PATÉTICO NA DERROTA, TRUMP DISPARA ACUSAÇÕES SEM PROVA E É COMPARADO A TARTARUGA OBESA COM CASCO PARA BAIXO

Donald Trump fechou com chave  de bosta sua desastrosa passagem pela Casa Branca. 

Coroando a extensa sucessão de cafajestadas cometidas durante as apurações da eleição presidencial dos EUA, que incluíram tuítes de incitamento aos seus seguidores no sentido de pressionarem para que não fossem contados os últimos votos (evidentemente por já saber que eles selarão a sua derrota), Trump deu a entrevista mais deprimente de que tomei conhecimento em mais de meio século acompanhando o noticiário de pleitos do Brasil e do mundo.

Assim, na noite desta 5ª feira (5), cabisbaixo e com a voz falhando em alguns momentos, ele leu na Casa Branca um pronunciamento à imprensa no qual apresentou várias acusações, todas sem provas, na linha de que seus adversários democratas, a grande mídia e o dinheiro grande teriam formado uma tríplice aliança para roubar-lhe a reeleição. Recusou-se, em seguida, a responder às perguntas do jornalistas.

As três principais redes de TV dos EUA (ABC, CBS e NBC), que transmitiam ao vivo o patético jus sperniandi presidencial, suspenderam a transmissão ao constatarem que ele continuaria se queixando de fraude eleitoral genericamente, sem apresentar fatos concretos para sustentar suas afirmações.

Comentando o triste espetáculo protagonizado por Trump, o principal âncora do canal CNN, Anderson Cooper, fez a comparação mais hilária de toda a campanha:

“Este é o presidente dos EUA.

É a pessoa mais poderosa do mundo e o vemos como uma tartaruga obesa com o casco para baixo, se debatendo no sol quente e percebendo que a sua vez acabou.

Mas ele não aceita e quer afundar o país junto consigo“. 

Como se dizia antigamente: entrada de leão, saída de cão. (CL)

OPERAÇÃO LAVA-JATO (2014-2020): QUAL É A FRASE QUE DEVE SER COLOCADA NA LÁPIDE, “REQUIESCAT IN PACE” OU “VADE RETRO”?

Já se passaram 12 anos desde a Operação Satiagraha, que pode ser considerada um rascunho da Operação Lava-Jato, deslanchada em março de 2014.

[Houve também o escândalo do mensalão em 2005, mas ficou restrito à compra de votos. O processo se tratou, portanto, de um fenômeno episódico, sem nenhuma pretensão de eternizar-se, ao contrário da versão brasileira do reich de mil anos com a qual sonharam Sergio Moro e Deltan Dallagnol.]

Orgulho-me de haver sido um dos poucos a ter percebido, já em meados de 2008, que estava a ser chocado um ovo da serpente.

Foi melancólica para mim a constatação de quão facilmente estava sendo impingida à opinião pública uma versão maniqueísta daquela disputa de facções capitalistas por um nicho florescente do mercado de telecomunicações: apresentavam-na como um filmeco estadunidense de mocinho e bandido, quando, na verdade, estava muito mais próxima daqueles faroestes niilistas italianos nos quais todos eram bandidos.

Pior ainda foi a recaída populista de parte da esquerda, que resolveu alinhar-se com a facção que buscou apoio policial como uma espécie de golpe sujo para prevalecer na guerra concorrencial de mercado, fazendo seus interesses particulares passarem por exigências da Justiça. Nessa ópera bufa, acabou sendo heroicizado um delegado ingênuo que estava sendo usado como laranja por seu antigo superior hierárquico.

Desde o primeiro momento percebi que, entre os dois esquemas mafiosos envolvidos naquele arranca-rabos nas altas esferas capitalistas, a melhor postura era manter a máxima distância de ambos.

Afinal, tendo plena consciência da podridão extrema a que chegou o sistema nesta fase agônica do capitalismo, há muito eu rezava pela cartilha do Paulo Francis: o combate à corrupção era (e é) uma bandeira intrinsecamente de direita.

E também me valeu a base de marxismo que eu, assim como boa parte dos quadros de esquerda formados nos anos 60, possuíamos.  Graças a ela, sempre avaliei o combate à corrupção, sob o capitalismo, como um inútil exercício de enxugar gelo.

Porque, enquanto o capitalismo colocar como objetivo máximo da nossa existência o enriquecimento e a conquista de uma posição de superioridade com relação aos demais seres humanos, tangendo todos a verem os outros como inimigos numa competição canibalesca e insana, sempre haverá quem ouse recorrer, para alçar-se acima dos concorrentes, a meios considerados ilícitos pela institucionalidade burguesa. E, para cada um que erra o pulo e acaba preso, há dezenas de outros prontos para assumirem a vaga.

Então, cruzadas policialescas nunca resolvem o problema em definitivo, fazem uma tempestade de som e fúria significando nada (Shakespeare) por algum tempo e depois todos os males ressurgem e os corruptos de ontem viram os próceres do centrão de hoje; mas, enquanto tais cruzadas duram, servem para justificar a imposição de rigores à sociedade, sendo, portanto, um caldo de cultura de Estados totalitários.

Pois totalitário foi o Estado brasileiro durante a ditadura militar, que começou a nascer com o moralismo rançoso das pregações udenistas contra Getúlio Vargas. 

O suicídio do caudilho gaúcho evitou o pior em 1954, mas as tentativas golpistas continuaram, quase obtiveram êxito em 1961 e desembocaram, finalmente, num pesadelo de 21 anos (vale lembrar que, além do anticomunismo, a quartelada de 1964 surfava na onda do enfrentamento da corrupção, tanto que chegou a ser enganosamente chamada de redentora).

Assim, quando o combate à corrupção voltou à baila em 2008, fui dos primeiros a alertar que seria uma roubada para quem quer transformar em profundidade a sociedade brasileira e não apenas aplicar-lhe maquilagens temporárias (vide, p. ex., este meu artigo de 2008 e este de 2009).   

E em 2017, quando do frustrado complô golpista de Joesley Baptista com a Lava-Jato, o trapalhão geral da República Rodrigo Janot e as Organizações Globo, adverti desde o início que o tenentismo togado nos conduziria a algo muito pior do que o Governo Temer: um Estado policial ideologicamente embasado.

Tivemos a sorte de que, ao invés do bem mais articulado Sergio Moro, quem acabou capitalizando a desconstrução moral do Governo Temer e os erros terríveis que o PT vinha cometendo desde 2013 foi o medíocre e fisiológico Jair Bolsonaro.

Este, empurrado pelos três cuervos por ele criados, até andou acalentando por um ano e meio a ideia de poder absoluto, mas depois se curvou à evidência dos fatos e, lembrando um antigo sucesso de Nelson Gonçalves, passou a cantar música bem diferente: Fisiologia, aqui me tens de regresso/ e suplicante te peço a minha nova inscrição

O descarte da Lava-Jato era tão inevitável desta vez como das outras em que o combate à corrupção, depois que a direita atingiu seus verdadeiros objetivos, virou letra morta. Ou alguém já esqueceu todas as maracutaias que vicejaram à sombra da tal redentora, inicialmente escondidas pela censura, mas que depois se tornaram amplamente conhecidas?!

Então, a minha sugestão de frase para a lápide da Lava-Jato não é a tradicional Requiescat in pace, até porque nada garante que ela finalmente descanse e nos deixe em paz: a demagogia jacobina que a inspirou sempre poderá ser exumada quando a direita estiver precisando virar a mesa de novo.

Sugiro Vade retro, já que a Lava-Jato tem muita culpa no cartório por estarmos no inferno atual. (por Celso Lungaretti)

AO DEFENDER O BRILHANTE USTRA, O VICE MOURÃO, NA VERDADE, O DESMENTIU

Entrevistado dias atrás pela Deutsche Welle, o vice-presidente Hamilton Mourão pretendeu defender a memória do serial torturer Carlos Alberto Brilhante Ustra, afirmando que o comandante do pior centro de torturas dos anos de chumbo no Brasil (no qual mais de 2 mil cidadãos conheceram o inferno e contra o qual mais de 500 denúncias foram formalizadas) “era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”.

Com isto divergiu do próprio Brilhante Ustra, que em 2008 tentou, com as palavras abaixo, livrar-se de uma ação declaratória no sentido de que ele fosse considerado responsável pelo assassinato do jornalista Luiz Merlino nas dependências do DOI-Codi:

O Exército brasileiro é uma pessoa jurídica, sendo que, pelos atos ilícitos, inclusive os atos causadores de dano moral, praticados por agentes de pessoas de direito público, respondem estas pessoas jurídicas e não o agente contra o qual têm elas direito regressivo. (…) Todas as vezes que um oficial do Exército brasileiro agir no exercício de suas funções, estará atraindo a responsabilidade do Estado“.

Ou seja, em vez de tentar provar inocência, ele preferiu pleitear o arquivamento da ação alegando que o alvo correto de tal acusação deveria ser o Exército brasileiro!

Portanto, Mourão acaba de desmentir o finado torturador que Jair Bolsonaro não cansa de elogiar, pois Ustra, nos momentos de maior exasperação com o abandono a que considerava estar sendo relegado pelo Exército, repetiu a ladainha dos principais carrascos condenados no Julgamento de Nuremberg, seus congêneres: Eu só estava cumprindo ordens…

Mesmo no seu hostil depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2013, ele continuou deixando implícito seu descontentamento com o tratamento que recebeu do Exército, ao ressaltar: 

“…quem é que deve estar aqui não é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. É o Exército Brasileiro, que assumiu, por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo e sob os quais eu cumpri todas as ordens…”.

Mas, gato escaldado pela má repercussão de seu desabafo de 2008 junto aos círculos ultradireitistas que o apoiavam, Ustra acrescentou a fantasiosa ressalva de que tais ordens seriam “legais, nenhuma ordem ilegal” 

Foi na esteira  do primeiro episódio que lancei o melhor de meus muitos artigos sobre o Brilhante Ustra, recolocando a questão nos trilhos corretos: por mais que ele merecesse pessoalmente o repúdio dos civilizados, nunca passou de um elo a mais de uma cadeia de comando no topo da qual  estavam os próprios generais ditadores. 
Não teria uma palavra sequer a alterar hoje. Leiam-no e avaliem:

OS MOTIVOS DO TORTURADOR

Embora seja impossível simpatizar com os motivos de um Brilhante Ustra ou, sequer, aceitá-los, eu compreendo muito bem o que o leva a sentir-se traído e injustiçado.

Ao comandar o DOI-Codi, ele fez exatamente o que dele esperava o Exército: combateu o inimigo por todos os meios a seu dispor, sem importar-se com os direitos humanos, as convenções de Genebra e outras perfurmarias. Saiu-se vitorioso e foi aclamado por seus pares.

Veio a redemocratização e ele passou a ser estigmatizado como um monstro… sozinho! 

Levou merecidamente a culpa por tudo aquilo que seus comandados fizeram. Mas, ninguém se lembrou de cobrar de seus superiores a responsabilidade maior que tiveram nas atrocidades perpetradas pelo DOI-Codi durante os anos de chumbo. As conveniências políticas falaram mais alto do que o senso de justiça.

Se fosse um homem de princípios, Brilhante Ustra se rebelaria contra aqueles que lhe ordenaram que cometesse crimes contra a humanidade e depois se puseram a salvo, não carregando juntos com ele o fardo do opróbrio. 

Mas, de quem fez o que ele fez durante 1970/1974 só poderia esperar-se o caminho tortuoso que preferiu trilhar: tentar convencer o Brasil inteiro de que as vítimas é que eram os algozes e ele, um pobre coitado sem culpa nenhuma no cartório.

Seus dois livros repulsivos, entretanto, atraíram contra si a ira dos justos. Porque são montados a partir das informações arrancadas dos prisioneiros mediante as torturas mais cruéis, seja no próprio DOI-Codi, seja nos aparelhos clandestinos da repressão, de onde não se saia vivo. Era muita impudência utilizar o espólio de sua ignomínia para tentar justificar-se. 
Então, eis Brilhante Ustra, mais do que nunca, sendo visto pelos brasileiros como o torturador-símbolo da ditadura militar.

Mas, não serei tão injusto com ele como ele sempre foi com os outros: afirmo e assino embaixo que seus superiores tiveram culpa ainda maior pelas práticas desumanas e desonrosas do DOI-Codi, nessa que foi uma das páginas mais vergonhosas da História do Brasil(CL)

EM 22 DE MAIO ÚLTIMO, O BOZO RODOU A BAIANA E PASSOU A BERRAR, ESPUMANDO DE ÓDIO: “VOU INTERVIR! VOU INTERVIR!”

É hilária, no gênero de humor negro, a longa reportagem que a revista piauí publicou, de autoria da jornalista Mônica Gugliano: O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo (acesse aqui). 

Comédia por comédia, eu prefiro, contudo, O rato que ruge (d. Jack Arnold, 1959), sobre uma república das bananas que decide declarar guerra aos EUA, esperando ser derrotada e depois obter ajuda para sua reconstrução – uma alusão sarcástica ao Plano Marshall. Por dois motivos: 

— Peter Sellers era um grande ator, Jair Bolsonaro nem para chanchadas presta;

— o plano dos governantes de Fenwick chega a parecer equilibrado e sensato, se comparado com os chiliques grosseiros e grotescos do rato que ruge brasileiro. 

A reportagem o mostra fora de si ao receber a notícia de que o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, consultara a Procuradoria-Geral da República sobre a possibilidade de apreender seu celular e o do filho Carlos, uma formalidade de rotina face a uma notícia-crime apresentada por três partidos.

Tão desinformado quanto desequilibrado, Bolsonaro rodou a baiana e passou a gritar, espumando de ódio: “Vou intervir! Vou intervir!”.

Quais os delírios de um anormal que passavam por sua cabeça? Estes, segundo a Mônica:

Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. 

Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo até que aquilo esteja em ordem, segundo as palavras do presidente. 

No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando aquilo estivesse em ordem

Depois de uma caricata reunião de cúpula cujo relato nos transmite a mesma sensação de mediocridade abissal daquele outro show de horrores encenado por alguns dos mesmos personagens, cuja gravação foi exibida aos brasileiros por ordem do STF conseguiram finalmente tirar-lhe aquela ideia fixa da cabeça oca:

Dois argumentos ajudaram a acalmar Bolsonaro na reunião. 

O primeiro: não havia ordem para apreender seu celular, apenas uma consulta do ministro do STF, de modo que ainda havia a possibilidade de que a apreensão não ocorresse. 

(De fato, dez dias depois, Celso de Mello arquivou o pedido de apreensão, mas, em sua decisão, fez questão de mandar um recado ao presidente, dizendo que o descumprimento de uma ordem judicial configuraria gravíssimo comportamento transgressor.) 

O outro argumento: o governo daria uma resposta contundente ao STF na forma de uma nota pública. Combinou-se na reunião que o general Heleno assinaria a nota.   

Mas, independentemente do que o ridículo aprendiz de ditador pensava que poderia fazer, baseando-se em interpretações falaciosas sobre um poder moderador que os militares não estão de maneira alguma autorizados pela Constituição a desempenhar (Ives Gandra Martins melhor faria se continuasse apenas ensinando aos ricos como pagarem menos impostos ou nenhum imposto), a realidade dos fatos está é neste outro trecho da reportagem:

Entre os militares da reserva, estão os saudosos da ditadura militar. Eles defendem a radicalização do governo, inclusive com a adoção de medidas de exceção. 

A situação é outra entre os atuais comandantes, que têm tropa e poder. Esses querem distância da polarização política e rejeitam qualquer hipótese de intervenção militar. 

Nos três últimos meses, enquanto Bolsonaro minimizava a pandemia e apoiava manifestações radicais na frente de quartéis, as três forças – Marinha, Exército e Aeronáutica – se encarregaram de adotar um comportamento oposto, participando das ações de combate à Covid-19. 

No mesmo dia em que Bolsonaro fez pronunciamento na tevê dizendo que a pandemia era um problema sério na Itália, mas não no Brasil, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, publicou um vídeo dizendo que a crise sanitária talvez seja a missão mais importante de nossa geração.

Ou seja, se a turma do deixa disso não tivesse impedido Bolsonaro de intervir, certamente (e bota certeza nisso!) teria quebrado a cara e, como consequência, sido reconduzido à insignificância do qual um destino insólito o retirou, para desgraça dos brasileiros. (por Celso Lungaretti)

DOCUMENTÁRIO SOBRE A PRISÃO DE CAETANO VELOSO LEMBRA UM INFERNO PELO QUAL EU PASSEI 4 MESES DEPOIS

Marcado para 2 a 12 de setembro próximos, o 77º Festival de Veneza apresentará em sua mostra não-competitiva (ou seja, sem concorrer ao Leão de Ouro e demais prêmios da seleção oficial) o documentário brasileiro Narciso em Férias, sobre a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil duas semanas após a assinatura do Ato Institucional nº 5 e os 54 dias em que permaneceram encarcerados na PE da Vila Militar (RJ).

Escrito e dirigido por Renato Terra e Ricardo Kalil, o filme é focado em Caetano, hoje com 77 anos. Mostra como ele e Gil foram mantidos em solitárias durante duas semanas e depois transferidos para celas. 

Sobre a inferno da solitária, ele conta: 

Eu tinha de comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido. 

Foi durante o cativeiro que ele viu as fotos inéditas do nosso planeta, tiradas do espaço e publicadas pela revista Manchete, que o inspiraram para compor Terra dez anos mais tarde. 

E a lembrança das risadas da irmã mais nova lhe serviam de consolo, daí ter composto lá mesmo a pungente Irene.

(veja aqui Caetano Veloso interpretando Irene ao vivo)

“Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui/ Eu não tenho nada, nada, quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada”

Quatro meses depois foi a minha vez de passar por aquele quartel, talvez até na mesma solitária (eram três). 

Afora comer no chão mesmo e sem talheres, havia também o buraco no solo como latrina, a falta de torneira ou chuveiro, o espaço ínfimo, o frio que fazia à noite (deixaram-me só com a cueca e sem coberta nenhuma), de forma que, mesmo sentando no chão e abraçando as pernas na tentativa de me esquentar, mal conseguia pregar o olho.

Irritava-me muito a jactância de um sargento, que fazia questão de repetir a toda hora que Caetano e Gil haviam chorado quando tiveram suas jubas raspadas a zero, ao passo que os militantes pelo menos mantinham uma compostura básica, na avaliação machista dele. 

(veja aqui Caetano e Gil interpretando Terra ao vivo)

“Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia/ Foi que eu vi pela primeira vez as tais fotografias/ em que apareces inteira, porém lá não estavas nua/ e sim coberta de nuvens/ Terra/ Terra”

.

Não era esse o tipo de reconhecimento que eu queria do inimigo. E percebia muito bem que aquilo era demais para um civil, mesmo não tendo ele de passar pelas sessões de tortura a que nós éramos submetidos. 

Foi lá que o cabo Marco Antônio Povoreli, um brutamontes que pesava 140 quilos, por pura maldade, estourou meu tímpano com um tapa no ouvido direito dado com a mão espalmada, quando me reconduzia à solitária após haver sido torturado com choques elétricos. (por Celso Lungaretti)

MINHAS LEMBRANÇAS DO LABORATÓRIO QUE PODERÁ VENCER O CORONAVÍRUS

De todas as tentativas para se desenvolver uma vacina contra a Covid-19, a mais promissora neste momento é a resultante da parceria entre a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca

Fiquei contente ao saber, pois, em cerca de duas décadas nas quais ganhei meu pão trabalhando em agências de comunicação empresarial, a AstraZeneca foi uma das empresas menos criticáveis que divulguei.   

Um dos motivos era ela ter então como presidente no Brasil (ignoro se o atual foi escolhido da mesma maneira) um profissional selecionado mediante concurso, único exemplo dessa prática em pelo menos uma centena de companhias com as quais me relacionei como prestador de serviços jornalísticos.

Foi a ADS Comunicações que, como contratada da britânica Zeneca, fez toda a divulgação à imprensa da fusão com a sueca Astra, em 1999. E o redator incumbido dessa conta era eu, embora a minha função principal fosse a de gerenciar a produção dos jornais e revistas dos clientes.

Pelo menos uma vez por mês eu pegava a rodovia Raposo Tavares e ia até Cotia (SP), onde me reunia com seus principais dirigentes para acertarmos detalhes de trabalho. [Um bônus que eu sempre me concedia era, na volta, dar uma parada no Rancho da Pamonha…]

Quantas vezes entrei aí! A vida passa num piscar de olhos…

Como tinham todos um perfil mais de acadêmicos que de empresários, nossos papos muitas vezes se desviavam para assuntos gerais e eu deles extraía muitas informações valiosas para minhas análises de economia e política.

Lembro-me de que, quando uma pequena quantidade de um medicamento saiu com dosagem errada impressa na embalagem, o que poderia levar consumidores desatentos a tomarem o dobro das cápsulas de que necessitavam, o recall foi simplesmente perfeito, sem poupar despesas nem sonegar informações ao público e às autoridades.

É claro que, embora eu admirasse a AstraZeneca como uma empresa mais ética do que outros grandes laboratórios com os quais me relacionei profissionalmente, nunca me passou despercebido que os vultosos investimentos na pesquisa e desenvolvimento de produtos para melhorar a qualidade de vida de cancerosos já sem possibilidade de cura seriam melhor utilizados se sua destinação fosse a P&D de medicamentos para curar o câncer.

[O que equivaleria a matar a galinha dos ovos de ouro, pois ricaços  com o pé na cova pagavam os olhos da cara para não sofrerem muito nos seus meses ou semanas finais. Por que não se limitavam à velha morfina, ao invés de empobrecerem os herdeiros?!]  

Então eu era assim

Enfim, seria injusto eu criticar a AstraZeneca por ser uma empresa capitalista (ela o era porque nós tínhamos sido incompetentes para dar um fim ao capitalismo desde que ele se tornara totalmente desnecessário e nocivo para a humanidade). Pelo menos, na comparação com outros gigantes da indústria farmacêutica, até onde eu sabia, ela era menos predadora e insensível.

É o que está mostrando agora, ao atuar no desenvolvimento e produção da vacina contra a Covid-19 sem intenção de lucro. (por Celso Lungaretti)

SAI O BOZONAZI, VOLTA O BOLSONARO DO BAIXO CLERO. SE NÃO NOS MEXERMOS, VIRÃO 29 MESES DE PASMACEIRA – 2

Quando Jair Bolsonaro, sabemos agora como, conseguiu eleger-se presidente da República em 2018, cheguei a temer que fosse instaurar um regime verdadeiramente fascista no Brasil. 

Naquele melancólico 28 de outubro, saí caminhando pela noite de uma cidade que, ou tentava voltar a ser a São Paulo da garoa, ou derramava lágrimas pelo inferno a que 39,3% dos brasileiros haviam condenado não só a si próprios, mas também aos restantes 60,7%.

E refleti que havia perigo, sim, de os piores cenários se materializarem, pesadelos como a Operação Jacarta (eliminação de uns 2 mil dissidentes, para que eles não participassem das fases seguintes de nossa História, pois até mesmo a direita mais hidrófoba sabia que, mais dia, menos dia, a democracia burguesa teria de ser restabelecida).

Tal limpeza de cenário foi mesmo cogitada pelos celerados do regime militar em meados da década de 1970, mas o ditador Ernesto Geisel abortou o projeto no nascedouro, ao exonerar o comandante do II Exército Ednardo D’Ávila Melo, sem que este e seus anjos exterminadores recebessem solidariedade nenhuma da tropa.

Enfim, mesmo naquele domingo nefasto e nefando concluí que bem maior era a chance de o cão que tanto ladrava acabar não mordendo, pois faltava uma peça fundamental do quebra-cabeças: uma economia suficientemente sólida para o Brasil permitir-se atrair uma forte rejeição internacional.

Alguns meses do (des)Governo Bolsonaro bastaram para eu ter a certeza de que a possibilidade maior inevitavelmente prevaleceria. Ele se desconstruía visivelmente e, se altos comandantes militares algum dia cogitaram acompanhá-lo numa aventura dessas, decerto já estariam percebendo que não passava do homem errado no lugar errado. 

Não era Hitler, Mussolini, Pinochet, nem mesmo um Plínio Salgado. Não passava de um farsante do baixo clero fazendo pose de bad boy.

Restava, contudo, o perigo de ele estar gerando uma massa crítica que poderia possibilitar a ascensão de outro líder, no qual a farda de golpista de ultradireita assentasse melhor.  

E, olhando um pouco mais à frente, havia uma tempestade econômica se armando, que certamente Bolsonaro e o mercador de ilusões Paulo Guedes não saberiam administrar.

Então, desde o 2º semestre de 2019 venho pregando o afastamento do Bolsonaro, a partir do verdadeiro rosário de crimes de responsabilidade por ele cometidos, quase todos bem piores do que o estelionato eleitoral da Dilma  Rousseff (as tais pedaladas fiscais, na verdade, não foram apenas o descumprimento de normas burocráticas, mas sim o expediente inconstitucional por meio do qual ela encobriu o descontrole das finanças públicas, para que não fosse um obstáculo à sua obsessão de reeleger-se, mesmo tendo feito um sofrível primeiro mandato).

A pandemia acelerou em muito o derretimento do (des)governo do pior presidente do Brasil em todos os tempos.

Seu negacionismo e sabotagem do combate científico da Covid-19 pode não caracterizar, em termos jurídicos, um genocídio, mas o efeito prático é exatamente o mesmo: o morticínio de dezenas de milhares de brasileiros cujo óbito teria sido evitado sob um presidente com um mínimo de qualificação para o cargo, que unisse União, estados e municípios para desenvolverem um esforço coordenado numa mesma direção e com uma perspectiva cientificamente correta. 

As esquisitices do Bolsonaro, que beiram a insanidade, tornaram o coronavírus fatal… também para ele! Pode não morrer da doença, mas seu futuro político já expirou. 

É cada vez menor o percentual de seus apoiadores bovinamente fanatizados. Parece que repetirá a trajetória dos 300 do Brasil, que na verdade eram uns 30 e agora não devem ser nem três…

E, já que estamos falando nisso, um dos motivos de o castelo de cartas ultradireitista ter sido derrubado pela primeira lufada de vento foi exatamente sua incapacidade de criar uma liderança capaz de desalojar o inepto Bolsonaro e assumir o controle da boiada. Sara Winter? Não me façam rir.

O guru charlatão que, comodamente instalado na segurança da Virgínia, movimenta seus títeres brasileiros para que retirem as batatas do fogo seguindo suas orientações (e correndo o risco de queimarem as mãos enquanto ele preserva as próprias!), não passa de um Sábado Dinotos piorado, pois pelo menos pusilânime o Aladino Félix (vide aqui) não era.

Sergio Moro tem miolos para alçar-se a voos mais altos, mas, para conseguir chegar aonde chegou partindo do quase nada (um mero juiz de 1ª instância!), teve de esconder muitos esqueletos no armário, dando ao Intercept Brasil a oportunidade de promover uma versão brasileira do Dia dos Mortos mexicano, ao colocar todos aqueles esqueletos dançando diante dos olhos espantados dos vivos. 

Jair Bolsonaro completou o serviço, ao açular seus boçalignaristas de raiz contra Moro, dando um de seus piores tiros no pé, mas também fazendo estragos no pé do vampiro de Curitiba (aquele abraço, Dalton Trevisan, firme e forte aos 95 anos!).

Outros desastres para o Bolsonaro foram:

— o desmantelamento de sua rede de fake news:

 a saída para o centrão, demonstração cabal de que ele jamais cogitou combater de verdade a corrupção política; e

 a derrocada de Donald Trump, que começou o ano como favorito à reeleição nos EUA e agora não passa de um azarão.

Como desgraça pouca é bobagem, as investigações dos crimes de sua familícia chegaram a um ponto em que não apenas a permanência de Bolsonaro como presidente da República, mas também a dele e dos filhos fora das grades, dependem da anuência do chamado sistema, que pode derrubá-lo com um piparote.

Daí minha total concordância com as avaliações de Thomas Milz (vide aqui) e Ricardo Kotscho (vide aqui), bem sintetizadas por este último:

Há um grande acordo em marcha entre civis e militares, magistrados e parlamentares, milicianos e evangélicos, gregos e troianos, para deixar tudo como está e ver como é que fica.

E as Forças Armadas? Estão satisfeitas com a nova proeminência e o mundo de cargos que Bolsonaro despejou no colo dos pijamados e até de oficiais da ativa, mas sabem muito bem que seria o pior momento possível para outra aventura como a de 1964: depois da tragédia humanitária em curso, a pior de sua História, o Brasil enfrentará uma depressão econômica igualmente sem precedentes. 

Então, melancolica mas honestamente, comunico a quem dá valor a minhas avaliações que, tendo o sistema vencido o braço de ferro com Bolsonaro e o emparedado, tende agora a deixá-lo  fazendo figuração como presidente nos próximos 29 meses, mas reduzido a um leão desdentado, uma rainha da Inglaterra.

Se nada de diferente acontecer, estamos condenados à estagnação e pasmaceira que marcou o governo do ditador João Baptista Figueiredo, o de José Sarney após o fracasso retumbante de seus planos econômicos e o de Dilma depois que Joaquim Levy se demitiu e ela desistiu de governar, ocupando-se apenas de tentar evitar seu impeachment, enquanto a debacle econômica avançava a passos de gigante.

O que pode alterar tal quadro?

Primeiramente, uma recaída do Bolsonaro, que pode chutar o pau da barraca, encarnar de novo o Bozonazi e tornar imperativo seu defenestramento.

Depois, nossa dita esquerda reencontrar a combatividade perdida, saindo de sua atual prostração.

Por enquanto, movimento secundarista e torcidas organizadas de futebol (!) à parte, a esquerda brasileira está fazendo lembrar o sarcasmo genial do Raulzito, pois neste ano inteiro tem permanecido sentada “no trono de um apartamento/ com a boca escancarada/ cheia de dentes/ esperando a morte chegar”… 

Por Celso Lungaretti

SAI O BOZONAZI, VOLTA O BOLSONARO DO BAIXO CLERO. SE NÃO NOS MEXERMOS, VIRÃO 29 MESES DE PASMACEIRA – 1

Ele bem que tentou tornar-se diferente…

ricardo kotscho

PARA MILITARES DO GOVERNO, 1964 AINDA NÃO ACABOU

Levantamento divulgado nesta 6ª feira (17) pelo Tribunal de Contas da União informa que o número de cargos civis ocupados por militares já chega a 6.100 em todas as áreas do governo. Quem vai tomar conta dos quartéis? 

“É proibido militar na política? É proibido militar ser ministro?”, perguntou candidamente o presidente Jair Bolsonaro, em sua live de 5ª feira, ao rebater críticas à progressiva militarização do governo. E ele mesmo respondeu: “Não!” 

Proibido não é, de fato. Mas lotear o governo com fardados não é papel dos militares numa democracia. Segundo a Constituição, as Forças Armadas são uma instituição do Estado, não dos governos de turno. Devem estar a serviço do país, para proteger seus cidadãos e as nossas fronteiras, não para tomar partido nas disputas políticas nem para receitar cloroquina. 

As coisas estão de um tal jeito, mas de um tal jeito viradas do avesso do avesso, que .daqui a pouco vamos ter que consultar novamente o Almanaque do Exército para saber quem será o próximo ministro ou presidente. 

Era assim na época da ditadura militar, de não saudosa memória, que parecia para sempre enterrada.

Para cerca de 3 mil militares da ativa ou da reserva, no entanto, que estão aboletados no Palácio do Planalto e por toda parte no governo, sob o comando do capitão Bolsonaro, 1964 ainda não acabou.  

…mas teve de voltar a ser o que sempre foi.

Até o cargo de chefe da Casa Civil da Presidência da República agora é ocupado por um general, assim como o Ministério da Saúde, que em plena pandemia está há dois meses com um interino, acompanhado de um batalhão de oficiais de várias patentes. 

A Amazônia foi entregue de porteira fechada ao vice-presidente, general Mourão, que pretende ficar lá com as suas tropas até o final do governo Bolsonaro, enquanto o ministro Ricardo Salles passa com a boiada. 

Desde a redemocratização do país em 1985, não se falava tanto de militares no noticiário político. 

Especula-se a todo momento sobre o que os generais palacianos acharam ou deixaram de achar sobre qualquer evento político ou jurídico. 

Eles estão sempre incomodados, cheios de não me toques, contrariados, indignados, como se fossem os intocáveis da República, acima do bem e do mal, inimputáveis como as crianças e os índios.

Ouvir o que pensa o Forte Apache, como é conhecido o QG do Exército em Brasília, passou a ser uma pauta permanente de alguns colunistas políticos.

As fontes costumam ser anônimas. Quando muito, se dá a patente dos que falam em nome da tropa. 

Para alimentar de ódio as falanges bolsonaristas nas redes sociais, é preciso sempre ter um inimigo para combater.

O alvo da vez é o ministro Gilmar Mendes, do STF, que teve a ousadia de advertir o Exército por se associar a um governo genocida, que já deixou um rastro de quase 80 mil mortos e mais de 2 milhões de brasileiros contaminados pelo coronavírus, incluindo o presidente da República, que vetou o fornecimento de água potável e comida para as populações indígenas. 

Notas de repúdio contra as declarações do ministro do STF não bastaram para acalmar o ânimo dos militares e, então, o general da Defesa, Fernando Azevedo, resolveu enquadrar Gilmar Mendes na Lei de Segurança Nacional e no Código Penal Militar (?). 

Nem o general Médici, no auge do AI-5, tinha chegado a tamanho desatino contra um ministro do Supremo. 

Com Bolsonaro fora de combate, confinado no Alvorada, até ele teve que entrar em ação, junto com os bombeiros do Supremo e do Congresso, para colocar panos quentes na querela entre Gilmar e o Exército, que não vai dar em nada. 

Há um grande acordo em marcha entre civis e militares, magistrados e parlamentares, milicianos e evangélicos, gregos e troianos, para deixar tudo como está e ver como é que fica. Bolsonaro seria sarneyzado, com apenas um ano e meio de governo, depois de garantir todos os penduricalhos e aposentadorias especiais da guilda brasiliense. 

“Descolonizem o governo, senhores! Voltem para os quartéis e peçam desculpas aos brasileiros e às respectivas tropas”, pede O Reinaldo Azevedo em sua coluna da Folha/UOL

Desconfio que isso não será tão fácil, nem acontecerá tão cedo. Eles demoraram 35 anos para sair novamente dos quartéis e agora vão demorar para voltar. 

O poder, já dizia Ulysses (ou foi Tancredo?), é afrodisíaco. 

Vida que segue. (por Ricardo Kotscho)

Toque do editor — Mestre, creio ter sido Henry Kissinger quem disse que “o poder é o afrodisíaco mais forte”. Mas, pouco importa.

Mais relevante é esclarecer aos leitores cá do blog que seu título sobre 1964 ainda não ter acabado se refere não às bestialidades da ditadura militar, mas sim à oportunidade que ela ofereceu aos fardados para se apossarem de um mundo de cargos na administração pública, nas estatais e até em grandes empresas privadas que precisavam ter um oficial pijamado em seu conselho diretivo para que seus interesses fossem devidamente considerados em Brasília. 

Quanto à tendência atual, é esta mesma que Kotscho aponta, assim como Thomas Milz o fizera no post que publicamos ontem (16/07). 

Tendo deixado o combate à corrupção pelo caminho e não podendo mais desenvolver manipulação das consciências em larguíssima escala por meio das redes sociais, além de estar vulnerabilizado por cada vez mais saber-se o que ele e os filhos fizeram em muitos verões passados, Bolsonaro foi emparedado pelo sistema.

Consumada a derrota, agora vai é tratar é de sobreviver até o final do mandato, mansinho a ponto de ajudar a impedir que Gilmar Mendes se tornasse o Márcio Moreira Alves de 2020. Antes, ele pedia a todos os diabos do inferno que lhe atirassem no colo uma oportunidade dessas…

Amanhã falarei mais sobre o que nos espera daqui para a frente. Mas, adianto que concordo em gênero, número e grau com o Kotscho, quanto à sarneyzação de Bolsonaro: 

Há um grande acordo em marcha entre civis e militares, magistrados e parlamentares, milicianos e evangélicos, gregos e troianos, para deixar tudo como está e ver como é que fica.

Então, ou nos mexemos, ou teremos de suportar 30 meses de estagnação e pasmaceira. (por Celso Lungaretti) 

O CALCANHAR DE AQUILES DE SERGIO MORO

NNos últimos dias publiquei a minha melhor série de muito tempo para cá (Dois capitães entrelaçam as milícias do RJ com os torturadores da ditadura),  na qual, depois de aprofundar o tema da absorção de antigos membros da repressão política do regime militar na modalidade criminosa então emergente e destacar as flagrantes afinidades das milícias brasileiras com as máfias italianas,  conclui apontando uma grave vulnerabilidade de Sergio Moro, um personagem que tem tudo para sobreviver à atual derrocada do bolsonarismo e continuar encarnando a ameaça de um estado policial na eleição presidencial de 2022.

Mas, colocado no finalzinho da 3ª e última parte da série, tal alerta corria o risco de passar despercebido, daí  este artigo complementar em que chamo a atenção especificamente para ele, começando por reproduzi-lo (em verde):                                                                                                                                           .

Em 2010, as milícias já controlavam 41 comunidades (eufemismo de favelas) do Rio de Janeiro, segundo levantamento do Ministério Público Estadual. O número, claro, deve ter crescido desde então, ainda mais a partir de 2018, quando colocou um pé nas mais altas esferas governamentais…

Elas começaram vendendo proteção e hoje extorquem de várias outras maneiras os moradores das áreas sob seu controle, cobrando, p. ex., comissões sobre venda de botijões de gás, água, TV a cabo ilegal e transporte.

Estão também envolvidas na/no:

— grilagem de terras de reservas ambientais pertencentes à União;

— extração de pedra e saibro nessas áreas;

— venda das terras com registro legal;

— venda de material de construção;

— construção de imóveis;

— furto de petróleo cru que passa pelas tubulações da Petrobras após extração na costa do Rio de Janeiro;

— comercialização de mercadorias ilegais; e

— até no despejo ilegal e derrubada de imóveis de um condomínio para que nele pudessem instalar-se milicianos.

Ou seja, assim como as várias máfias italianas, as milícias passaram da extorsão camuflada em fornecimento de proteção para uma atuação bem mais ampla e diversificada, combinando negócios ilícitos e outros legais, amiúde recorrendo a pressões, intimidações e até violências para atingirem seus intentos nos dois casos, além de cada vez mais influírem nos três poderes da República e neles se infiltrarem. 

O imperativo de o Estado brasileiro combater decididamente esse tipo de organização criminosa salta aos olhos.

Por último, uma pergunta que não quer calar: por onde anda aquele juiz que, em 2004, escreveu uma razoável tese (acesse-a aqui) sobre a Operação Mãos Limpas (por ele apresentada como “uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa” que “havia transformado a Itália em (…) uma democracia vendida”)?  Morreu?

Não, está bem vivo, mas Giovanni Falcone, se também o estivesse, decerto não se orgulharia desse pretenso discípulo.

Pois, ao integrar o governo Bolsonaro e até contribuir para a implementação de algumas das medidas presidenciais que claramente favoreciam as milícias, ele atuou não para evitar a atuação mafiosa, mas para alçá-la a um patamar mais elevado.

Se o Brasil se tornar efetivamente uma democracia vendida, parte da culpa, sem dúvida, lhe caberá.

Seu nome, todos já devem ter adivinhado, é Sergio Fernando Moro.  

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Ou seja, as lamentações a respeito do que ele fez ou deixou de fazer com o Lula sensibilizam principalmente os contingentes que já não votariam nele de jeito nenhum.

Pode causar-lhe considerável dano, contudo, a constatação de que ele já em 2004 esforçava-se ao máximo para atrelar sua imagem à da Operação Mãos Limpas mas, ao participar do Governo Bolsonaro, envolveu-se com um presidente que desde sua exclusão do Exército vinha mantendo relações altamente comprometedoras com a organização criminosa brasileira cuja trajetória mais se assemelha à das várias máfias italianas. 

Tal duplicidade pode desmascará-lo aos olhos de muitos e muitos que acreditaram piamente nas lorotas por ele espalhadas desde quando ainda era um quase desconhecido precisando se promover.

Pior: Lula pode mesmo ser culpado por praticar ou fechar os olhos à corrupção política que marca toda a história da República brasileira, mas as milícias do Rio de Janeiro exploram as comunidades mais pobres e vulneráveis, barbarizam, torturam e matam.

Se Moro quisesse mesmo ser o Giovanni Falcone brasileiro, como tanto forçou a barra para fazer-nos crer, eram as milícias do Rio de Janeiro ele deveria combater em primeiro lugar, não Lula e o PT. 

O certo teria sido liderar cruzadas tanto contra a corrupção política quanto contra as máfias do Rio do Janeiro. Mas, ele priorizou o inimigo menos perigoso e jamais combateu as milícias com o rigor que se impunha (muito menos quando tinha o dever de fazê-lo, como ministro da Justiça). 

Isto precisa ser explicado àqueles eleitores que ainda acreditam na imagem fantasiosa que a mídia dele espalhou. 

Dois juízes empenhados em destruir as máfias italianas foram assassinados ao cumprirem fielmente seu dever. Moro pega carona no martírio deles, mas jamais correu verdadeiro perigo.  (por Celso Lungaretti)

OBSERVAÇÃO: RECOMENDO FORTEMENTE A LEITURA DA SÉRIE Dois capitães entrelaçam as milícias do RJ com os torturadores da ditadura, QUE COMBINA RESGATE DA HISTÓRIA DOS ANOS DE CHUMBO COM MEU DEPOIMENTO PESSOAL SOBRE UM DOS PRINCIPAIS FORMATADORES DAS MILÍCIAS, O CAPITÃO GUIMARÃES. EIS OS LINKS: 

1ª PARTE

2ª PARTE

3ª PARTE

A CRIATURA AGONIZA, MAS A LUTA CONTRA QUEM CRIOU O MONSTRO VAI PROSSEGUIR

A notícia do momento é a pesquisa do Datafolha na qual 75% dos 2.016 entrevistados na terça (23) e quarta-feira (24)  passadas apontam a democracia como o regime mais adequado e apenas 10% consideram uma ditadura aceitável em algumas situações. O placar anterior, em dezembro último, tinha sido de 62% contra 12%.

Desde 1989, quando o instituto começou a pesquisar tal questão, é o maior índice de aprovação obtido pela democracia.

Para evidenciar ainda mais o fracasso das pregações totalitárias de Jair Bolsonaro, 78% veem o regime militar por ele idolatrado e relativizado como a ditadura que realmente foi e só 13% discordam.

Ou seja, um ano e meio de mandato foram suficientes para Bolsonaro desacreditar de forma acachapante os valores ultradireitistas que ele professa, daí sua vexatória situação atual, de depender basicamente do velho e execrado fisiologismo para tentar (inutilmente) salvar seu mandato. 

Mas,  como ele saberia se não tivesse passado três décadas de parasitismo legislativo ocupando-se de miudezas, o centrão nunca salva quem está despencando: vende caro seu apoio durante a fase agônica e o retira quando o desfecho é iminente, para compor-se com os vencedores.

Este blog vinha cantando a bola de há muito e reiterou seus prognósticos na última 5ª feira (25): O Trump e o Bozo deverão comemorar o réveilloon como ex-presidentes, para alívio e regozijo da humanidade. Os acontecimentos continuam se encaminhando exatamente em tal direção: 

— o palhaço estadunidense vê a Covid-19 voltar a crescer exatamente nos estados que lhe seriam eleitoralmente mais favoráveis, enquanto Joe Biden coloca 10 pontos de vantagem sobre ele nas pesquisas mais recentes;

— o palhaço brasileiro se mostra cada vez mais errático, caindo em profunda prostração com as más notícias, exagerando a importância das que lhe parecem boas (a decisão estapafúrdia que livrou Flávio Bolsonaro de um juiz de verdade tem fôlego curto e será derrubada adiante) e tentando agora projetar uma imagem de paz e amor que só serve para mostrar quão cínico ele pode ser e quão desesperada é sua situação.

Enfim, enquanto a Folha de S. Paulo faz uma edição dominical com a flagrante intenção de surfar na onda da derrocada do bolsonarismo, esforçando-se para aparentar estar reeditando seu papel nas diretas-já e, assim, poder colher o máximo de louros dentro em breve, quando o Bozo for removido do poder, este blog vai noutra direção: passará a discutir o que virá depois e qual deve ser a nossa postura diante do novo quadro que já se esboça.

Não nos interessa colher louros de vitórias parciais, mesmo quando tão necessárias quanto a que se avizinha (Bolsonaro se mostrou de tal forma pernicioso e destrutivo que seu afastamento se tornou a prioridade máxima e mais urgente da esquerda, à medida que cada dia de permanência no poder agrava a tragédia humanitária da Covid-19, maximizando as mortes evitáveis). 

Mas, a retirada do bode da sala é só um passo do caminho que precisamos percorrer para resgatarmos o Brasil da desigualdade social e do autoritarismo político que nele sempre prevaleceram, ora escancarados, ora camuflados como o vêm sendo neste século pelo consumismo e pelas ilusões democrático-burguesas. 

Bolsonaro logo será uma (deprimente) página virada da História, mas a luta contra o verdadeiro inimigo vai continuar. Seu nome é capitalismo. (por Celso Lungaretti)