Equador

DEPOIS DA ‘GUERRA DA LAGOSTA’, TEREMOS A ‘GUERRA DA CAMISINHA’?

Eis a principal lição a tirarmos do Caso WikiLeaks (pois é disto que se trata): as forças reacionárias perderam o último resquício de compostura e estão utilizando desavergonhadamente sua indústria cultural para impingir aos cidadãos as lorotas mais inverossímeis.

Querem retaliar Julian Assange por ter divulgado cerca de 250 mil documentos secretos estadunidenses, comprovando irrefutavelmente que os EUA cometem atos ilegais e abomináveis em suas intervenções para mudar governos de nações soberanas e nas caçadas a supostos terroristas.

O responsável pelo vazamento de tais evidências de crimes –que, estes sim, deveriam estar sendo apurados para efeitos penais–, um heróico soldado e analista de inteligência do exército dos EUA chamado Bradley Manning, é submetido a rigores extremos em prisões militares.

Graças a ele, a Assange e ao WikiLeaks, o mundo ficou sabendo, p. ex., que cerca de 150 pessoas inocentes ficaram presas durante períodos variáveis (até por vários anos) no centro de torturas de Guantánamo, sem julgamento nem nada, apenas por terem a ascendência errada ou haverem sido encontradas perto do lugar errado e na hora errada, sem nenhuma evidência concreta respaldando as suspeitas de envolvimento com ações terroristas.

Numa covarde demonstração do seu poder de esmagar os desafetos, os EUA há mais de dois anos estão destruindo Manning psicologicamente.

E foi para submeter Assange ao mesmo suplício que armaram uma farsa simplesmente ridícula na Suécia, no sentido de que o porta-voz do WikiLeaks ficasse detido naquele país –o qual, cumprindo seu papel no script, aceitaria em seguida entregá-lo aos Estados Unidos, para responder a acusações bem mais graves (espionagem e que tais).

As bombásticas acusações de estupro e crime sexual se reduzem ao fato de ele ter mantido relações consentidas com duas mulheres, a camisinha haver-se rompido e Assange (segundo elas) insistido em completar o ato sem preservativo. Nem sequer utilizou a violência para impor sua vontade, já que a fulana não foi agredida.

Se episódios deste tipo fossem levados a ferro e fogo, boa parte da população masculina mundial estaria encarcerada.

E é pra lá de sintomático o fato de uma das denunciantes ter todo o perfil de tarefeira da espionagem estadunidense: Ana Ardin é cubana, anticastrista e trabalhou para ONGs financiadas pela CIA. 

Basta somarmos dois e dois para encontrarmos quatro, ou seja, concluirmos que tudo não passou de uma  armação ilimitada  envolvendo uma potência (EUA), dois países lacaios (Suécia e Reino Unido) e uma nação vergonhosamente omissa (a Austrália, que não moveu uma palha por um australiano perseguido e injustiçado).

Mais: se Assange fosse apenas um cavalheiro que prefere transar sem camisinha o Reino Unido e a Suécia fariam tamanho reboliço e se empenhariam tanto em obter sua cabeça? Nem a pau, Juvenal.

Os britânicos, simplesmente, ameaçaram cometer um ato de guerra contra o Equador, ao comunicar-lhe que cogitavam invadir a embaixada equatoriana para sequestrar Assange. Como as embaixadas são extensões do território do país, isto equivaleria  a uma invasão do Equador. É crível que fossem tão longe por uma besteirinha de alcova?

Fez-me lembrar de uma desavença entre o Brasil e a França, meio século atrás, sobre a pesca em larga escala de lagostas na plataforma continental brasileira (mais detalhes aqui). 

Um pesqueiro francês foi apresado por uma corveta brasileira e houve até mobilização militar: o presidente Charles De Gaulle enviou um navio de guerra para proteger os pesqueiros e o Brasil deslocou esquadrões de aeronaves para o litoral nordestino. Os dois lados escoravam-se em interpretações diferentes dos direitos de pesca de peixes e de crustáceos.

deixa disso! acabou prevalecendo, mas o patético da chamada  guerra da lagosta  municiou fartamente os humoristas. A melhor gozação foi esta paródia, de autoria desconhecida, da marchinha carnavalesca “Cachaça não é água”:

Você pensa que lagosta é peixe?
Lagosta não é peixe, não!
Peixe é bicho que nada,
crustáceo não nada, não!

Pode faltar tudo ao brasileiro:
arroz, feijão e pão.
Mas, a lagosta é nossa,
De Gaulle não bota a mão!

Pode mandar vaso de guerra,
disto até acho graça:
por causa da lagosta,
até eu vou sentar praça!”

 Agora, o leão desdentado ameaça travar com o Equador a  guerra da camisinha. Falta um humorista que escancare tudo que há de hilário e grotesco nas atitude britânicas.

CORREA ACERTA AO DAR UM PASSO ATRÁS. VAMOS VER SE DÁ DOIS À FRENTE

A fase dos  grandes timoneiros  passou, sem deixar saudades
Várias vezes já fui alvo de desqualificações e insultos por parte de companheiros que não aceitam a diversidade de opiniões no nosso campo.

Para eles, toda e qualquer discrepância da  única posição correta  não passa de uma heresia a ser combatida a ferro e fogo. Talvez sem sequer saberem quem foi Joseph Stalin, são defensores extemporâneos do monolitismo stalinista.

Emblemático foi o que aconteceu quando do golpe de estado hondurenho. Posicionei-me desde o primeiro momento e da forma mais contundente contra a derrubada do presidente legítimo, mas recusei-me a levantar a bola do poltrão Manuel Zelaya, que se deixara expulsar do país vestindo pijamas. 
Percebi logo que lhe faltavam  cojones, como dizem os  hermanos. Um Salvador Allende morreria antes de consentir que o humilhassem daquela maneira.
O mundo desabou sobre mim. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos comprovaria o acerto da minha intuição.

Zelaya convocou uma épica carreata até a fronteira hondurenha, adentrou o país… e, frente a frente com os militares golpistas, refugou como menininho assustado, voltando atrás quando o certo seria deixar-se prender para forçar a OEA e os países que o apoiavam a agirem, ao invés de se limitarem às declarações platônicas. 

Enumerando as grandes oportunidades desperdiçadas?
Depois, reentrou sorrateiramente e enfurnou-se na embaixada brasileira em Tegucigalpa… para nada. Passado o impacto do factóide que gerou, o confinamento mais esvaziou do que alavancou sua luta. Permaneceu por mais de quatro meses e, no final, inerte e esquecido, acabou nem sequer influindo na eleição que decidiu quem o sucederia.
Encerrado o prazo legal do seu mandato, seguiu para o exterior, melancolicamente. Depois, fez acordo com o novo governo e voltou em definitivo para Honduras, com o rabo entre as pernas.
“QUANDO UM DOS NOSSOS DÁ TIRO NO PÉ, 
NÃO PRECISA QUE O APLAUDAM
O que acaba de acontecer não foi tão acachapante, mas mostrou de novo como é melhor adotarmos uma posição independente do que contribuírmos, como  Maria vai com as outras, com os desacertos do nosso lado.
O presidente equatoriano Rafael Correa exagerou na dose ao processar jornalistas mas, claro, muitos por aqui baliram amém, alinhando-se incondicionalmente com sua atitude.
Quando um dos nossos dá tiro no pé, não precisa que o aplaudam; ajuda mais quem o alertar sinceramente de que assim acabará manco.
Foi o que fiz (vide aqui), de forma respeitosa, pois estou acostumado a lidar com a má fé do PIG. Às vezes ficamos mesmo exasperados, mas não podemos nos deixar levar pela emoção, facilitando o trabalho do inimigo.

Eis uma notícia  quentinha  da agência France Presse:

Há momentos em que é obrigatório darmos um passo atrás
O presidente do Equador, Rafael Correa, pediu à Justiça que anule a condenação a três anos de prisão e ao pagamento de 40 milhões de dólares imposta a três diretores e um ex-editor do jornal El Universo, a quem processou por injúrias, após a forte rejeição internacional gerada pela sentença.
‘Apesar de saber que muitos não querem que sejam feitas concessões a quem não merece, assim como tomei a decisão de iniciar este julgamento, decidi ratificar algo que há tempos estava decidido em meu coração: perdoar os acusados, concedendo a eles a remissão das condenações que merecidamente receberam’, disse Correa ao ler nesta segunda-feira uma carta aos equatorianos.
A condenação contra o diretor Carlos Pérez, os subdiretores César e Nicolás Pérez e o ex-chefe de opinião Emilio Palacio tinha sido rejeitada pelas relatorias para a liberdade de imprensa da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da ONU, e organizações como Repórteres Sem Fronteiros, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e a Human Rights Watch.
O perdão da pena é uma opção do querelante prevista no código penal para as ações privadas por injúria, como é o caso de Correa, que apresentou sua ação na qualidade de cidadão comum.
Andou bem Correa ao dar um passo atrás, para poder depois dar dois à frente.
Tomara que continue acertando: o que tem de fazer agora é estimular a criação de alternativas à imprensa burguesa, ao invés de confrontá-la diretamente, tornando-se alvo fácil para aqueles a quem convém apresentá-lo como ditador em potencial.

COMO ENFRENTAR A DITADURA DO PIG?

O presidente equatoriano Rafael Correa exortou os povos latino-americanos a se rebelarem contra a ditadura exercida pelos meios de comunicação.

O motivo foi o posicionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no caso dos três editores e um ex-editor do jornal El Universo que a Justiça equatoriana condenou a três anos de prisão e ao pagamento de uma indenização de US$ 40 milhões a Correa.
A CIDH solicitou ao Equador que suspenda a condenação. Correa retrucou que tal medida “envergonharia um estudante medíocre de primeiro ano de Direito”.
O pivô da disputa é aquele episódio de setembro de 2010, quando Correa foi dialogar com policiais rebelados por motivos salariais, passou mal, foi levado a um hospital policial e mantido praticamente como refém durante 10 horas, até ser resgatado pelos militares.
O editor de Opinião do El Universo acusou Correa de haver mandado o exército disparar contra o hospital, colocando em risco a vida de civis.
A Justiça emitiu sentença draconiana, a comissão ligada à OEA ficou contra. Se não for atendida, o problema poderá ser levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos e, em último caso, à Assembléia Geral da OEA.
Na minha opinião, Correa pode ter razão em termos gerais, mas exagera no episódio particular: uma mísera coluna não justifica tamanha tempestade em copo d’água. 
Ele, com certeza, obteria –amigavelmente ou pela via judicial– idêntico espaço para retrucar nas próprias páginas do El Universo. Poderia dar coletiva refutando. Tinha a imensidão de meios de um governo para contrapor sua versão à do jornalista. 
Um ano e meio depois, ainda há sequelas do motim policial

Foi buscar uma sentença desproporcional e se vulnerabilizou: até leigos percebem que o rigor foi excessivo. Isto facilitará o trabalho dos adversários.

Quanto à  ditadura dos meios de comunicação, ela é nossa velha conhecida. Saltou aos olhos em episódios como a cobertura do Caso Battisti, da ocupação policial da USP e da barbárie do Pinheirinho (para citar só os mais recentes). Tendenciosidade e manipulação extremas.
No entanto, tudo que seja ou pareça cerceamento da liberdade imprensa terá sempre custo político altíssimo –até porque será exatamente a tal  ditadura  que vai fazer a cabeça de leitores, telespectadores e ouvintes no que tange à interpretação do episódio.
Há uma lição esquecida do passado: a criação em 1951 de uma rede noticiosa alternativa para se contrapor à hostilidade com que a imprensa tratava o governo de Getúlio Vargas, a Última Hora do grande Samuel Wainer.
Está mais do que na hora de a esquerda brasileira se unir em torno de projetos desse tipo, buscando caminhos para se comunicar com as grandes massas, ao invés de deixá-las entregues à lavagem cerebral de jornalões, revistonas e tevezonas.
Enquanto cada agrupamento e tendência preferir ter seus próprios veículos, colocando-os principalmente a serviço dos seus interesses eleitoreiros, perderemos de goleada a batalha da comunicação.
Precisamos nos ver de novo como campo da esquerda, deixando de lado tais ridículas  disputas de mercado, que nos igualam a pequenos comerciantes competindo por clientela.
Somos bem mais fracos. Temos de reaprender a nos somar, em nome de nossos ideais e valores maiores. Chega de brigarmos por  boquinhas  e por ninharias do sistema! Existimos para acabar com o sistema, não para nos cevarmos nele.
Quanto às tentações autoritárias, são a pior resposta que podemos dar. O caminho continua sendo o de criarmos o poder popular, fora do estado e contra o estado; não o de pretendermos voltar o estado burguês contra a burguesia. 
Nunca dá certo. E acaba quase sempre em golpe… contra nós.

BADERNAÇO NUMA NAÇÃO DE OPERETA

Não foi por desatenção nem omissão que deixei de me pronunciar sobre os acontecimentos do Equador.

É que, desde o primeiro momento, pareceu-me mais um descontrole, uma reação em cadeia, do que um golpe propriamente dito.
Então, para não ficar gritando “lobo!” a cada situação, com risco de não ser ouvido quando o lobo aparecer, preferi aguardar que o quadro se aclarasse.

E, como a poeira logo baixou, não houve mais necessidade de nenhuma intervenção.

O fato é que policiais, insatisfeitos com medida governamental que afetaria suas finanças, iniciaram uma bagunça, queimaram pneus, ergueram barricadas.
O presidente Rafael Correia teve a péssima idéia de ir pessoalmente dissuadir os baderneiros e se deu mal: inalou gás lacrimogênio e acabou hospitalizado.
Os policiais cercaram o Hospital Militar, tiveram-no à sua mercê… e permitiram que continuasse se comunicando com Deus e o mundo.
Violaram o mandamento nº 1 de qualquer golpista que se preze: nunca permitir que o presidente exorte as forças leais à resistência.
Por quê os policiais agiram com esse aparente amadorismo?
Porque os golpistas, embora existissem, não eram majoritários dentre eles, daí a indecisão quanto ao passo seguinte: radicalizarem ou recuarem? Enquanto não chegavam a um consenso sobre a linha de ação a ser adotada, a ação acabou.
Os golpistas também não eram majoritários dentre os militares, que acabaram mantendo sua lealdade a Correia. No momento oportuno o resgataram, desmontando o picadeiro.
O principal motivo para eu não embarcar no alarmismo virtual foi o fato de que Forças Armadas nunca marcham a reboque de policiais.
Estes podem até ser utilizados como abre-alas, mas depois o show é comandado por quem tem verdadeiro poder de fogo.
Quando percebi que os milicos não adeririam, considerei o caso liquidado.
No fim, coube ao próprio Correia a melhor síntese do imbroglio:

“[O Equador é] uma nação de opereta, onde a força pública sequestra seu comandante-em-chefe e ataca o povo que deveria proteger. Este é um dia triste”.