Geraldo Vandré

VEJA AQUI DOIS VÍDEOS RARÍSSIMOS DO VANDRÉ NO EXÍLIO

A dica foi do companheiro Vinícius de Barros, a quem agradeço: eis duas gravações muito raras do Geraldo Vandré, em 1970, apresentando-se numa TV alemã.

A “Caminhando” está belíssima, a “Modinha” (da trilha musical de A hora e vez de Augusto Matraga) nem tanto. Mas ambas nos dão o mesmo aperto no coração, pois é cruel a comparação do Vandré ainda não destruído com o zumbi que hoje carrega seu nome.

VEJA O VÍDEO DA CANÇÃO "CHE", INTERPRETADA POR GERALDO VANDRÉ.

E já postara esta autêntica preciosidade no início de 2012: tratava-se de um link para baixar a música, mas acabou sumindo. Agora, alguma boa alma a disponibilizou no Youtube e eu pude trazê-la de volta para cá.

Trata-se de uma canção dedicada a Che Guevara, na intepretação do Geraldo Vandré e Trio Maraya. 


O companheiro Vitor  Nuzzi gentilmente dissipou minhas dúvidas sobre esta Che, enviando-me trechos de sua biografia ainda inédita do  Vandré:

…na verdade, eram duas músicas, conforme lembra Lúcia, mulher de Marconi [integrante do Trio Maraya]. ‘O Marconi fez ela instrumental. Quando perguntavam, ele dizia que era homenagem aos gaúchos, para não se complicar’, lembra, rindo. (…) E a música de Marconi –sem sequer ter letra– foi censurada.

Segundo Lúcia, Vandré sempre quis pôr letra, mas Marconi nunca aceitou. E assim nasceria um segundo Che, quando o grupo todo foi para a Europa. Tempos difíceis, pré-AI-5, clima de vigilância no ar.  Os cartões enviados da Bulgária chegavam abertos. ‘O Marconi acabou fazendo uma outra melodia, e o Geraldo fez a letra.'”

Cheguei a cogitar que se tratasse da música de Walter Franco que Vandré defendeu num Festival Universitário da Canção Popular. Mas, esta era outra, sobre a qual encontrei o seguinte depoimento do blogueiro Waldir Mengardo:

No Festival Universitário da Tupi, em 1968, Geraldo Vandré, junto com o Trio Maraya, defendeu uma música de Walter Franco chamada Não se queima um sonho. Era uma alegoria a Che Guevara que foi classificada na sua eliminatória e depois sumiu na final do Festival sem nenhuma explicação. (…) Era mais ou menos assim: Seu sonho sem mortalha/ Cercado de solidão/ Eu trago bem guardado/ Na espera e no coração/ Vem oh! meu companheiro Che/ seu sonho quero lhe dar…

Nuzzi, por sua vez, esclareceu ter o festival da Tupi ocorrido logo depois do alvoroço de ‘Pra não dizer que não falei das flores’ no Maracanãzinho. O maestro Rogério Duprat, na época, criticou a composição de Walter Franco: “Se Guevara estivesse aqui não ia gostar nem um pouco. É preciso acabar com toda essa choradeira em torno do guerrilheiro, não é assim que se faz uma revolução”.


Quanto à canção que junta os versos do Vandré e a segunda melodia do Marconi, acima disponibilizada, eis a letra:

Perdoa minha canção

Se canta só minha boca
Se tem forma de oração
Se a minha voz fica rouca
Qual arma sem munição
Se ela é franca, mas é pouca
Enquanto fica canção

Sobe monte, desce rio
Sobe monte, desce rio
Sobe monte, desce rio
Vida e barbas por fazer
Sobe monte, desce rio
Sobe monte, desce rio
E um dia, de repente
Foi morto num amanhecer

Na frente de todo mundo
Pra todo mundo aprender

Quem afrouxa na saída

Ou se entrega na chegada
Não perde nenhuma guerra
Mas também não ganha nada

Sobe monte, desce rio
Sobe monte, desce rio
Sobe monte desce rio
Vida e barbas por fazer
Sobe monte, desce rio
Sobe monte, desce rio
E um dia, de repente
Fez da morte mais viver

Quem seguia teu caminho
Não podia te prender
E mesmo por traição
Pensando que te matava
No meu corpo americano
Fincou mais teu coração
No meu corpo americano
Fincou mais teu coração

Perdoa minha canção…

COMPANHEIRO MANÉ? PRESENTE! AGORA E SEMPRE!

Presos políticos visitados por d. Eugênio Sales, no RJ; o Mané é o de camisa xadrez. 
Fiquei arrasado ao tomar conhecimento da morte do estimado companheiro e amigo Manoel Henrique Ferreira, o Mané. Deveria estar com 62 ou 63 anos e sofria de uma doença degenerativa, a ataxia cerebelar, que certamente foi causada ou agravada pelas bestiais torturas a que o submeteram.

Eu o conheci quando organizava a Frente Estudantil Secundarista na zona Leste paulistana, em 1968. Estudava, se bem me lembro, num colégio da Vila Zelina. Logo se tornou um dos líderes do nosso movimento.

Suas convicções revolucionárias se expressavam também na música: tocava violão e cantava muito bem, principalmente as canções do Geraldo Vandré.

Em junho daquele ano, quando passamos algumas horas papeando com o compositor num boteco da rua Maria Antônia, apareceu um violão e ele pôde mostrar ao ídolo como interpretava suas criações.

É assim que sempre me lembrarei do Mané, romântico, esperançoso, convicto. Sua sinceridade era transparente e comovente.

Quando, no final de 1968, evidenciou-se que o movimento de massas se tornara inviável sob o terrorismo de estado pleno que o AI-5 instaurou, ele optou por continuar lutando da forma que ainda era possível, na clandestinidade.

Mané e Gilney Viana no início da greve de fome pela anistia

De quase uma centena de estudantes aglutinados na nossa Frente, apenas oito nos dispusemos a correr os riscos da luta armada; Mané não hesitou nem um instante.

Ingressamos juntos na VPR e nunca mais o vi, pois nossas incumbências na organização seriam diferentes. 
Soube de sua via crucis nas garras dos torturadores, coagido a renegar a militância; denunciando o arrependimento forçado em carta enviada a D. Paulo Evaristo Arns (o manuscrito pode ser baixado aqui); e sofrendo, em represália, novas torturas.
Em 2005, quando lancei o Náufrago da Utopia, ele me escreveu e trocamos dois ou três e-mails. Continuava magoado com os companheiros que tanto e tão duramente o hostilizaram, sem levarem em conta as circunstâncias extremas que o haviam levado a cair na armadilha da repressão.

Disse que meu livro tinha mostrado o inferno pelo qual passaram jovens idealistas como ele e o Massafumi Yoshinaga (sobre quem escrevi aqui). E também que preferia ficar distante daquilo que o levava a recordar momentos dolorosos. Achei que fosse uma forma cifrada de dizer que eu não o deveria procurar, entendendo o seu contato como uma manifestação de solidariedade.

Hoje eu mudaria o trecho a ele relativo da minha poesia sobre os companheiros secundaristas. Décadas atrás, era acertado dizer sobre o Mané que, “quando o épico/ resultou trágico,/ se desencontrou”; mas, depois de ter passado alguns tempos em parafuso, ele felizmente achou forças para superar os traumas e se reerguer.

Os versos que melhor serviriam como síntese definitiva da sua trajetória, contudo, o grande Paulo Vanzolini já escrevera antes de mim: “Ali onde eu chorei,/ qualquer um chorava./ Dar a volta por cima que eu dei,/ quero ver quem dava!”.  

Foi gratificante ver a morte do Mané noticiada de forma respeitosa (eis aqui um exemplo).  Ele fez amplamente por merecer o reconhecimento dos melhores brasileiros. 
Lamento que o pobre Massafumi não tenha aguentado esperar por uma visão mais equilibrada e compassiva do seu drama. É terrível pensar que ele morreu em meio às trevas mais densas, sozinho e amargurado!

UMA PALAVRA MAIS
Como o paralelismo obviamente ocorrerá aos leitores, antecipo-me: nunca pensei em tomar uma atitude do tipo da do Mané porque me via como vítima dos dois lados. A repressão me barbarizara, quase assassinara (estive próximo de um ataque cardíaco), lesionara para sempre e prejudicara terrivelmente minha reputação -mas não me surpreendera, pois fez exatamente o que eu esperava dos inimigos.
Os companheiros, por outro lado, atiraram sobre mim uma culpa que eu não tinha pela delação da área guerrilheira em Registro, haviam descumprido compromissos solenes que vigoravam entre nós e me levado ao completo desespero (o que fora o grande motivo de eu não ter resistido mais à repressão, depois de 75 dias de incomunicabilidade e torturas). Além de estar reduzido a um trapo, ainda me sentia abandonado pela organização, o que me fragilizava ainda mais. Ou seja, a VPR fez o que eu jamais esperaria dos amigos.
Então, ao ser procurado lá por 1974 ou 1975 por outro partido de esquerda, que me ofereceu condições para esclarecer à imprensa o que eu havia sofrido (para, num segundo momento, voltar a militar, em escalão inferior ao antigo), eu defini minha posição: contaria tintim por tintim as torturas pelas quais passara e as condições dramáticas em que acabara sendo arrastado à TV, mas não omitiria que este último e deplorável episódio havia sido antecedido por gravíssimas violações das normas de conduta da VPR -que, aparentemente, escolhera-me como bode expiatório para evitar que se tornasse conhecida pelo restante da esquerda a identidade da pessoa responsável pelo desbaratamento da escola de guerrilha.
Como o tal partido considerasse inoportuno esmiuçar este outro lado, não houve acordo. E eu só contei a minha história quando procurado diretamente pela imprensa (a IstoÉ, em 1979 ou 1980). 
Como tais particularidades do meu caso fugiam do foco da reportagem (era sobre os ditos arrependidos de maneira geral), aí não fiz questão de que se tocasse no segundo problema. Idem nas posteriores entrevistas para o Zero Hora e a Veja, também limitadas aos temas tortura e coação.  
Só na polêmica com o Marcelo Paiva, em 1986, eu tive oportunidade de levantar este véu, inclusive surpreendendo a todos com a revelação de que houvera não uma, mas duas áreas de guerrilha em Registro (a abandonada, na qual eu estivera, e a definitiva, que eu não ficara conhecendo). Aparentemente, ninguém até então se referira a este pequeno detalhe

UMA TENTATIVA DE DECIFRAR O ENIGMA VANDRÉ

Um filme para ver no blogue obrigatório, que eu estava esquecendo de postar, é O que sou nunca escondi (2009), um documentário de 56 minutos sobre o Geraldo Vandré, realizado por alunos de videojornalismo da PUC-SP (até eu dei depoimento…). 

Trata-se de uma tentativa de decifrar o enigma Vandré, empreendida com muito talento e dedicação pelos então aprendizes, hoje provavelmente já exercendo a profissão. Torço para que nela obtenham muito sucesso, sem perderem o idealismo jamais!

O título se baseia numa estrofe da “Cantiga brava”, que soa tristemente irônica face ao parafuso em que entrou o principal nome da resistência musical à ditadura nos anos 1960 (na década seguinte, tal primazia caberia ao Chico Buarque).

É a seguinte: “O que sou nunca escondi / Vantagem nunca contei / Muita luta já perdi / Muita esperança gastei / Até medo já senti / E não foi pouquinho, não / Mas fugir, nunca fugi / Nunca abandonei meu chão”.

Como bônus, os leitores podem, além de assistirem  ao filme na janelinha que está logo abaixo, lerem meu apanhado dessa trajetória que acompanhei de perto e com muito interesse (inclusive, papeando longamente com o Vandré em dois momentos cruciais para ele, quando acabava de compor a “Caminhando” e, depois, quando a canção, finalmente liberada pela censura, fazia sucesso na voz da Simone).

DE COMO UM HOMEM PERDEU 
SEU RUMO E SEGUIU AO LÉU

“O que foi que fizeram 
com ele? Não sei.
Só sei que esse trapo, 
esse homem foi um rei”
(“Tributo a um Rei Esquecido”, Benito Di Paula)

Eu era um adolescente começando a me interessar pela política quando uma música me atingiu em cheio: “Canção Nordestina”, do Geraldo Vandré, com aquele seu grito lancinante (“…e essa dor no coração/ aaaaaaaAAAAAAAAIIII!!!!, quando é que vai acabar?”) reverberando em todo o meu ser.

Foi meu primeiro ídolo. Acompanhei a consagração da “Disparada” no Festival da Record de 1966, amaldiçoando o Jair Rodrigues por abrir um sorriso bocó no trecho mais dramático (“…porque gado a gente marca,/ tange, ferra, engorda e mata,/ mas com gente é diferente”).

Depois, nos estertores d’O Fino, o programa passou a ser conduzido, uma em cada quatro semanas, pelo Vandré (nas outras, se bem me lembro, os apresentadores eram Chico Buarque/Nara Leão, Elis Regina/Jair Rodrigues e Gilberto Gil/Caetano Veloso).

Num de seus programas, o Vandré declamou o “Poema da Disparada”, sobre a modorrenta mansidão da boiada, até que um simples mosquito, picando um boi, provoca o estouro, e nada volta a ser como antes. Belíssimo.

Aí o Vandré brigou com a TV Record e saiu da emissora, alegando que um desses seus programas havia sido censurado pelos patrões, por temerem os milicos.

Veio o Festival da Record de 1967 e Vandré, com sua “De Como Um Homem Perdeu o Seu Cavalo e Continuou Andando” (“Ventania”), virou alvo de críticas e maledicências ininterruptas nas emissoras da Rede Record. Diziam até que ele havia contratado uma turba para vaiar Roberto Carlos.

“Ventania” não era mesmo uma segunda “Disparada”, mas, sem toda essa campanha adversa, certamente teria obtido classificação melhor do que o 10º lugar.

Aconteceu então aquele 1º de Maio esquisito, em 1968, quando o PCB garantiu ao governador Abreu Sodré que ele poderia discursar tranqüilamente na Praça da Sé.


O ingênuo acreditou e, mal iniciara sua arenga, recebeu uma nuvem de pedradas dos trabalhadores do ABC e de Osasco, organizados pela esquerda autêntica.

Sodré correu para se refugiar na Catedral… e Vandré foi fotografado ajudando Sua Excelência a escafeder-se!


A foto saiu na capa da Folha da Tarde e fez com que muitos companheiros virassem as costas ao Vandré.


No final de junho/68, os operários de Osasco tomaram pela primeira vez fábricas no Brasil (em plena ditadura!). A reação foi fulminante, com a ocupação militar da cidade.

Os estudantes, por sua vez, ocuparam a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, para mantê-la aberta durante as férias de julho, prestando apoio à greve de Osasco.

O Vandré apareceu lá numa noite em que estava marcada uma assembléia para tratar desse apoio estudantil à greve. Foi hostilizado pelos universitários. Lembro-me de uma fulaninha histérica, gritando sem parar: “traidor!”, “traidor!”.

Eu estava lá com companheiros secundaristas da Zona Leste, todos admiradores do Vandré. Então, nós nos apresentamos e fizemos o convite para vir conosco ao bar da esquina, oferecendo-lhe a oportunidade para retirar-se de lá com dignidade, e não como um cão escorraçado.

Bebemos, papeamos horas a fio, apareceu um violão e rolaram algumas músicas.

Lá pelas tantas, o Vandré mostrou uma letra rascunhada e cheia de correções, que ele escrevera numa daquelas folhas brancas de embrulhar bengalas (pão). Tratava-se da “Caminhando”, que tivemos o privilégio de conhecer ainda em gestação.

É importante notar que ele fez a “Caminhando” exatamente para responder aos esquerdistas que o estavam hostilizando. Quis lhes dizer que continuava acreditando nos mesmos valores, que em nada havia mudado.



Vandré antigo: no front musical contra o imperialismo

Perguntamos por que ele havia socorrido o Sodré. A resposta: “Nem sei. Estava tão bêbado que não me lembro de nada que aconteceu”.


Na verdade havia amizade entre ambos, tanto que o Vandré, meses mais tarde, encontraria abrigo no Palácio dos Bandeirantes, onde o próprio Sodré o escondeu quando a repressão estava no seu encalço.

Mas, não ficava bem para um artista de esquerda admitir publicamente que mantinha relações perigosas com um governador da Arena, partido de apoio à ditadura.


“HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO”  


Naquele Festival Internacional da Canção da Rede Globo, “Caminhando” foi uma das cinco classificadas de São Paulo para a final nacional no Rio. O que chamou mais a atenção por aqui foi a não-classificação de “Questão de Ordem”, do Gil, e o desabafo de Caetano Veloso, que acabou retirando sua “É Proibido Proibir” do festival em solidariedade ao amigo (depois de detonar o júri “simpático, mas incompetente” com um discurso célebre, que acabou sendo lançado em disco com o nome de “Ambiente de festival”).

Intervalo da gravação do ‘disco do exílio’

No Rio, entretanto, o clima era outro. Numa manifestação de rua, a repressão acabara de submeter estudantes a terríveis indignidades (os soldados chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças). Isto despertou indignação generalizada na cordialíssima cidade maravilhosa.

O III FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram “Caminhando” como desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em SP. Quando ele reapresentou a música, já como 2ª colocada, os moradores de Copacabana abriram as janelas de seus apartamentos e colocaram a TV no volume máximo. Cantaram juntos, expressando toda sua raiva da ditadura.

Reencontrei Vandré por volta de 1980, quando eu estava colaborando com várias revistas de música. Propus-lhe uma entrevista, que ele não quis dar: “Não tenho disco nenhum para lançar, para que falar à imprensa?”.

Acabamos indo (eu e minha companheira de então) ao apartamento do Vandré na rua Martins Fontes e papeando durante horas — mas em off, ou seja, com o compromisso de nada publicar.

Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo.

Vandré atual: a melancólica entrevista ao Globo News


O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.

A censura finalmente liberara “Caminhando”, que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar ao estrelato junto com a música, seria assassinado.


Insistiu muito em que não se apresentaria no Brasil enquanto o País não oferecesse garantias legais aos seus cidadãos. Realmente, algum tempo depois, soube que ele marcara um show para uma cidade paraguaia fronteiriça com o Brasil. Quem foi lá vê-lo? Brasileiros, claro…

Quando estudava na ECA/USP, eu fiz  um trabalho de teleteatro de meia hora baseado nos personagens e no clima da música “Das Terras de Benvirá” — sobre uma comunidade de refugiados brasileiros decidindo se já era hora de voltar para a patriamada ou não. Foi a minha pequena contribuição àquele momento (1979) em que a anistia dos companheiros presos e exilados estava na ordem do dia.

Conheço quase toda a obra do Vandré. E considero o LP francês, Das terras de Benvirá, uma pungente obra-prima.

“SEM TER NA CHEGADA QUE MORRER, AMADA…”  


Quanto à promiscuidade com milicos depois de sua volta do exílio, a canção composta em homenagem à FAB e as declarações negando ter sido torturado, a minha opinião é que ele não conseguiu suportar a realidade de que não se comportara heroicamente.


Em várias músicas (como “Terra Plana”, “Despedida de Maria” e “Bonita”), o personagem central era um guerrilheiro. As canções, narradas sempre na primeira pessoa. Ou seja, saltava aos olhos tratar-se do papel que sonhava ele mesmo vir a representar na vida real.

Mas, claro, o Vandré não foi para a guerrilha nem parece ter passado pela prova de fogo nos porões da ditadura com o destemor desejado. Além disto, não aguentou viver muito tempo fora do Brasil e voltou com o rabo entre as pernas. Com certeza, negociou com os militares para poder desembarcar “sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor matar” (“Canção Primeira”).


Vandré atual: homenageado ao assistir a show no Bixiga

A minha impressão é a de que, nordestino e machista, ele não aguentou admitir que fora quebrado pela tortura e pelos rigores do exílio. Então, preferiu desconversar, embaralhar as cartas, descaracterizar-se como ícone da resistência. Enfim, um caso que só Freud conseguiria explicar (e esgotar).

De qualquer forma, aquele artista que tanto admiramos foi assassinado pelos déspotas, da mesma forma que Victor Jara e Garcia Lorca. Sobrou um homem sofredor, que merece nossa compreensão.


LEIA TAMBÉM OS ARTIGOS SOBRE A ENTREVISTA DO VANDRÉ AO “GLOBO NEWS” (clique p/ abrir):
VANDRÉ: DILACERANTE
VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS
AINDA SOBRE O ARTISTA MÍTICO QUE HABITA A MEMÓRIA DE SUA CANÇÃO

ELE DESATINOU. DE NOVO!

Ele já aceitou servir como exemplo de bom menino
Creio ter escrito alguns dos textos mais compassivos (vide aquiaqui e aqui) sobre o que Geraldo Vandré se tornou após haver pactuado com a ditadura militar para poder voltar ao Brasil “sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor, matar”, como antevia em sua pungente “Canção primeira”. 
Não tenho dúvidas de que sofreu lavagem cerebral quando esteve internado numa clínica psiquiátrica sob a vigilância de agentes da repressão, impedido até de falar com outros pacientes, entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973.
Mas, de alguma forma ele contribuiu para sua desgraça: foi ao não suportar a barra do exílio e assumir o risco do regresso, mesmo conhecendo muito bem o inferno no qual desembarcaria. É isto, e só isto, que lhe recrimino. Com relação a tudo que se passou depois, ele tem minha compreensão, valha o que valer.
Foi um episódio bem na linha do que Paulo Francis alertava sobre os artistas: por mais que os admirássemos por sua arte, jamais deveríamos levá-los muito a sério quando se manifestassem sobre outros assuntos ou se aventurassem em outros projetos (principalmente os revolucionários).
Eu não levava muito a sério aquele Chico Buarque que, no olho do furacão dos anos de chumbo, lançava músicas inofensivas e nada tinha a declarar quando a direita enchia sua bola, erigindo-o em bom exemplo enquanto tudo fazia para denegrir os músicos engajados. 
Em 1969 caiu-lhe a ficha e ele próprio reconheceu que o Chico de 1967/68 não merecia mesmo ser levado a sério.
A censura deste disco era ruim. A das biografias é boa?
Fez, então, sua veemente autocrítica: “Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta/ Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço a mala e corro/ Pra não ver a banda passar/// Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto…”.
Por admirarmos demais a grande arte que ele produziu a partir de então e até o fim da ditadura, passamos uma borracha na sua vacilada anterior e seguimos em frente. A Geraldo Vandré e a Chico Buarque devemos ser imensamente gratos por terem composto as duas músicas mais emblemáticas do repúdio à ditadura: “Caminhando” e “Apesar de você”. Não dá para exigirmos que o criador esteja sempre à altura das criações.
Mas, o Chico não deveria exagerar. É simplesmente estarrecedor vermos um dos artistas outrora mais censurados tornar-se um tardio apologista da censura, defendendo a aberração antidemocrática de que a liberdade de expressão deva ser cancelada em benefício de figuras públicas que não querem ver expostos os aspectos desagradáveis de suas biografias. Só falta ele agora cantar  Pai, aproxima de mim esse cálice!
Paulo Francis certamente daria um de seus característicos sorrisos sarcásticos se lesse a declaração do Chico à Folha de S. Paulo desta 6ª feira, 18 (talvez acrescentando um previsível  como queríamos demonstrar): 

Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado, mas continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado.

Ora, o  cidadão  com o qual ele se preocupa e cujo direito quer ver priorizado não é um cidadão qualquer, mas sim uma celebridade. Quem escreve as biografias dos coitadezas anônimos?

E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica? 

Se o Chico sempre consentiu em que as gravadoras e editoras buscassem de todas as formas maximizar os espaços a ele dedicados pelos veículos escritos e eletrônicos, concedendo obedientemente as entrevistas que marcavam e posando pacientemente para as fotos que recomendavam, o que nos está pedindo é isto: que só levemos em conta o  retrato em branco e preto  que ele e seu staff querem projetar. Que nos atenhamos à imagem manipulada que os profissionais de comunicação forjam, expurgando tudo que é inconveniente para os objetivos comerciais (coincidentemente, o mesmo que incomoda os egos superinflados dos artistas). 
Qualquer tentativa de furar tal bloqueio deverá ser encarada como invasão da privacidade. Ou, verbalizando o que realmente sentem tais pavões mas não têm coragem de proclamar, como um  crime de lesa-majestade.
Tendo o Chico feito uma autocrítica tão contundente por suas omissões em 1967/1968, aguardo ansioso a que fará por suas falações de 2013. Isto se ainda lhe restar humildade para tanto.

TELEDRAMA DO LUNGARETTI, BASEADO NUMA CANÇÃO DO VANDRÉ


“O anel que tu me deste,
eu guardei pra me ajudar,
construi numa viola
de madeira o teu altar

O amor que tu me tinhas,
eu roubei pra me salvar,
toda hora em que a danada
da saudade me pegar

Joema dos olho claros,
bem verdes da cor do mar,
me dava tanta alegria
que eu não preciso sonhar

Basta me lembrar agora
das coisas que deixei lá,
Joema, sempre esperando
na praia do grande mar

Valdomiro das estrelas
não podia se encurvar,
tinha tudo que queria,
dizia tudo a pintar

Olhando pro céu de frente,
perdido sempre em chegar,
Valdomiro das estrelas
pedia para voltar

Que faço agora, Maria?
Que faço agora, diz já!
Se longe, eu ouço hoje
as coisas que vão voltar 


Me diz, quem vem comigo
agora, ao Deus dará,
                           nas coisas de todo mundo,
                           na vida do benvirá?”


Geração Maldita é um teledrama que criei, inspirado no clima e personagens da música “Das Terras de Benvirá”, de Geraldo Vandré; foi exibido em outubro/1978 na ECA/USP.

Exilados latino-americanos vivendo na Europa. Carlos entra com estardalhaço.

CARLOS: Todo mundo preso! (sobressalto geral; Valdomiro erra pincelada no quadro)

GERALDO: Porra, eu já te disse pra não fazer esse tipo de brincadeira! Vai ficar toda hora lembrando as coisas pra gente, vai?

CARLOS: Que é isso, Geraldo, calminha! Não vamos fazer nenhuma tragédia por isso, né? O que passou, passou, ficou pra trás, então temos de encarar tudo com naturalidade. É a única maneira de sair dessa e partir pra outra, né? Então vamos lá, companheiro, abre um sorriso pra gente ver, vá!

GERALDO: E eu vou achar graça do que, da condição da gente aqui, das últimas notícias do nosso país?

VALDOMIRO: Do meu quadro, que você estragou?

CARLOS: Olha, Geraldo, nós aqui não poderíamos estar melhor, afinal não fomos expulsos até hoje. Nosso país (tom irônico), dizem que está virando uma grande potência, a gente deveria até festejar. E (para Valdomiro) esse teu quadro é a milésima versão da Lúcia nas praças e ruas da patriamada. Então, ainda sobram umas 999 pra você ficar aí todo embasbaco e macambúzio, sabe?, olhando a tela como se fosse a Virgem no altar. Só falta você se ajoelhar e beijar o cavalete.

VALDOMIRO: Tá, vai à merda! O que é que um liderzinho estudantil de subúrbio entende de arte? É só pintar um monte de proletas dando com as ferramentas na cabeça de uns burguesões…

CARLOS: É isso mesmo, companheiro! De preferência, uns burguesões de fraque e cartola, alisando a ponta dos bigodes, assim (imita o gesto).

VALDOMIRO: Então, bastaria eu partir prum realismo socialista desbragado pra você logo dizer que sou o maior pintor revolucionário do 3º Mundo?

GERALDO (abrupto): Como é, dá pra você me dizer se trouxe o jornal?

CARLOS: Olha, na edição da tarde tem uma notinha parecida com a da manhã. Diz que oito foram presos e dois feridos, mas não traz o nome de ninguém.

ANA: Mas não deve ser nada não, Geraldo, afinal existem tantos grupos atuando lá na Capital, por que teria de ser logo o do Otávio?

GERALDO: É, mas é uma merda estar aqui, longe de tudo, a gente fica o tempo todo se preocupando. Quando menos espera, abre o jornal e vê que pegaram um companheiro, um amigo…

VALDOMIRO: O que a gente podia fazer, já fez. Se ficássemos lá, com todo aquele clima de luta armada, nuncia iriam deixar que nós continuássemos com os movimentos de cultura popular. Iríamos ser vigiados o tempo todo, perseguidos, presos, poderíamos até virar presuntos e a culpa ser jogada em cima de um Sabado Dinotos qualquer. E nem pra clandestinidade iríamos poder passar, todo mundo já viu nossa cara no jornal, na TV. Iria ser pior pra nós e pros companheiros, que teriam de ficar tomando conta da gente.

CARLOS: Não é nada disso, Valdo, que nada! Vamos voltar agora mesmo que eu atiro livros na cabeça dos reaças, você joga a coleção de Lúcias, o Geraldo atira os discos, num instante a gente faz a primeira revolução tropicalista da História!

ANA: E eu, o que é que eu faço?

CARLOS: Ah, você atira as canetas dos teus alunos. Nunca te contaram que a pena é mais afiada que a espada?

VALDOMIRO: E pra você isso vai ser uma revolução ou uma comédia de pastelão?

CARLOS: As duas coisas juntas, afinal estamos falando de um país latino-americano, né?

* * *

Geraldo recordando a sua saída do país.

JOEMA: É a tua oportunidade, você tem de partir, amor!

GERALDO: Mas, eu posso me esconder na casa da tua irmã, eles não vão me procurar lá…

JOEMA: Ela não concorda com nossas idéias, como é que eu vou pedir que ela se arrisque por nós?! E tem também os vizinhos, tem aquele capitão que mora na esquina, tem os parentes que falam demais, você acabaria preso e complicando minha família!

GERALDO: Tem de haver um jeito de eu poder ficar!

JOEMA: Vai ser sempre um risco inútil, benzinho. Você mesmo me ensinou que o importante é a causa, não as pessoas. Agora é a hora de você se sacrificar, se preservar para o futuro. Afinal, você é um símbolo, teus versos vão continuar inspirando o pessoal daqui. E um dia você ainda vai voltar para cantar nossa vitória, junto com o povo na rua. Você precisa viver para esse dia, amor!

GERALDO: Mas, como eu posso partir e deixar você e o Otávio correndo perigo aqui?

JOEMA: Você me deu os primeiros livros e me convidou para aquelas palestras, quando você quis que eu participasse da tua vida e da tua luta. Você já deveria saber que um dia a gente poderia ter de se separar. Mas não se preocupa, não, Geraldo! Olha, eu tomo conta do Otávio porque ele é teu irmão, ele toma conta de mim porque sou tua companheira, então, no fim, não acontece nada pra nenhum de nós dois, tá, benzinho?! Isso, dá um sorriso, eu não quero me lembrar de você tão sério e carrancudo!

GERALDO: Se fosse tudo tão simples…

* * *

O chamado de Carlos desperta Geraldo de seus devaneios.

CARLOS: Geraldo! Geraldo! Acorda, pô! ‘Tava querendo saber se você concorda que um companheiro que você não conhece, o Roberto, venha passar uns tempos aqui com a gente. Ele fez umas ações, caiu em fevereiro e foi pra Argélia no último sequestro. Agora ele se desligou da Organização e está com as idéias meio embananadas; quer parar pra pensar antes de decidir alguma coisa. A gente pode dar uma força pra ele, né, que ele está quase sem grana e precisando mudar do apartamento do Osvaldo. Sabem, tem uns dez caras amontoados lá e vão chegar mais na semana que vem.

GERALDO: Por mim, pode trazer quem precisar, a gente sempre se ajeita.

VALDOMIRO: É, tudo bem.

ANA: Mas, pra mim não está nada bem! Solidariedade, solidariedade, é somente nisso que vocês pensam, não? Que importam as leis de exceção, as torturas, a destruição das entidades de massa? Vocês esquecem num instante que estão aqui por causa dos porralocas dos militaristas! Só querem saber de exibir sua solidariedade revolucionária, seu paternalismo pequeno-burguês, ajudar o coitadinho, pobrezinho, que até ontem estava botando fogo no mundo!

VALDOMIRO: Calma, Ana, calma, o que é que há? Estamos caindo no emocionalismjo, assim não dá pra discutir. Se você acha que o pessoal da luta armada provocou uma radicalização de direita, é um juízo político, a gente pode até concordar com você. Agora, você não pode negar que os companheiros que fizeram essa opção agiram por um ideal. Eles arriscaram a vida…

ANA: É, a deles e a nossa também!
VALDOMIRO: …arriscaram a vida pra fazer a revolução do modo deles. A História provou que não tinham razão, mas…
ANA: Você está sempre botando panos quentes, sempre conciliando! É por causa de gente como você que esses aventureiros se colocaram à testa do processo, provocando uma ditadura que vai durar uma porrada de anos. E nós estamos aqui, fugindo que nem judeus errantes!
CARLOS: Aninha, Aninha, esse negócio de linhas, tendências, partidos, isso tudo é pra quem está lá no meio da luta. Aqui nós não passamos de uma meia dúzia de subdesenvolvidos, somos que nem um bando de índios na terra dos brancos. Se a gente não ajudar uns aos outros, vem a cavalaria e acaba com todo mundo. Uga, uga, mim, grande chefe Pena Desbotada, decreta a paz entre todos os peles-vermelhas…
ANA: Não brinca, Carlos, vamos discutir a sério. A gente está aqui, longe dos companheiros, dos amigos, não conhecemos quase ninguém aí fora; os gringos não querem nem ver cucarachas perto. A única coisa que sobra é nossa amizade, nossa união. Então, vem um guevarista fanático, com toda aquela carga de violência, e estraga nosso ambiente. Aí nem nesta casa vamos ficar em paz.
CARLOS: Mas Ana, isso é uma imagem que você criou, uma fantasia de sua cabeça. O Roberto não é nada disso. Pelo contrário, é calmo, intelectualizado, entende tanto de marxismo como qualquer um de nós aqui.
VALDOMIRO: Eu acho que você deveria fazer uma autocrítica, Ana, analisar até que ponto teu problema pessoal está influenciando teu posicionamento.
ANA: Eu não tenho nenhum problema pessoal. Eu só queria que vocês pensassem um pouco antes de trazer aqui pra dentro um militarista desses, que vai ficar o tempo todo defendendo o seu aventureirismo e quebrando o pau com a gente!
* * *

Ana relembra a noite de sua prisão, a morte do marido, as torturas.

ANA: Acorda, Ju, acorda!

JÚLIO: Hã, hã, o quê?

ANA: Tocaram a campaínha!

JÚLIO: Mas agora, porra! E que horas… mas são quase quatro horas!

ANA: Meu amor, meu amor, e se for a repressão? Eu disse pra você não ficar dando abrigo pra esse pessoal da guerrilha!

JÚLIO: Mas, que é isso, meu bem? Eu tinha de ajudar, a solidariedade revolucionária… (novo e longe toque de campaínha). Mas, não deve ser nada, não. Fica aqui que eu volto já.

VOZ: Onde é que ele está? Diz logo, filho da puta!

VOZ: Aqui! (fuzilaria)

JÚLIO: Não! Não!

VOZ: Algema ela! Bota o capuz!

VOZ: Quem contatava seu marido? Quando ele ia ter o próximo ponto? Você também conhece os aparelhos? Fala, sua vaca, fala! (Ana grita, ofega)

* * *

Ana e Valdomiro conversando, na calmaria subsequente ao ato sexual.

ANA: Você tinha razão. Era por causa do Júlio. Nem sei se por causa dele mesmo ou da minha vida com ele. Era o que vocês chamariam de uma vidinha pequeno-burguesa, mas eu gostava. Gostava de viver sem susto, cuidando da casa, das crianças, do meu jardinzinho. Toda a rotina de uma dona-de-casa alienada. E daí? Não nasci pra grandes aventuras, nunca pensei em mim transformando o mundo. Acho que casei com o Júlio porque ele era seguro, tranquilo, tomava todas as decisões. Sabia o que era melhor pra nós dois.

VALDOMIRO: E mesmo assim vocês entraram pro partido?

ANA: Bom, até o golpe militar a gente não se interessava pela política. Aí foram todas aquelas prisões, perseguições… o Júlio viajando a serviço e conhecendo aqueles cafundós… tanta miséria, tanta injustiça… No fundo, no fundo, nem ele nem eu seríamos revolucionários se vivêssemos numa democracia de 1º Mundo. Quanto muito entraríamos num partido de centro-esquerda, sei lá… Mas, é que no nosso país a gente não tinha opção. Ou ficava quietinha engolindo tudo que o governo fazia ou entrava pra esquerda. Então, o Júlio acabou entrando e me levando junto.

VALDOMIRO: E acabamos todos no mesmo barco, lambendo as feridas e esperando a hora de voltar…

ANA: Depois de tudo isso eu já nem sei se vale a pena voltar. Se não fossem as crianças…

VALDOMIRO: Nem pense nisso, Aninha. A ditadura não é eterna. A gente ainda vai ver todo mundo feliz, todo mundo rindo, todo mundo se amando. Você precisa voltar pra ensinar a seus filhos, a seus alunos. Explicar pras novas gerações o quanto vale a liberdade. Tudo o que passamos não vai valer nada se a gente não fizer com que essa seja a última ditadura. Se a gente não despertar o povo pra defesa dos seus direitos, pra que o povo nunca mais aceite um regime como esse.

ANA: Do jeito como você fala, parece que a gente vai voltar e encontrar o país do jeitinho que era. Mas, será que com todos esses anos de lavagem cerebral eles não vão conseguir mudar as pessoas? Será que quando a gente voltar o povo ainda vai se lembrar de nós, vai querer ouvir o que a gente tem pra dizer?

VALDOMIRO: Não sei, francamente não sei. Até agora eu vivi para minha obra, e fiz da minha obra o instrumento para despertar as pessoas para a vida, para a harmonia, para a felicidade. Eu entrei na política para aprender mais sobre a vida, para ter coisas mais importantes para transmitir. Se tudo isso não serviu para nada, se quando eu voltar ninguém mais estiver interessado num futuro melhor, em ver na arte o que o mundo deveria ser e depois transformar o mundo… aí, não sei, acho que minha vida terá sido completamente inútil (revê sua dedicação à arte, seus esforços para expressar uma verdade maior nas telas).

* * *

A festa e a batucada com que festejam a chegada de Roberto fazem Carlos relembrar suas alegrias passadas, os discursos que fazia quando o povo ainda tinha lugar na praça.

CARLOS: Eles estão sozinhos, trancados nos gabinetes, escondidos atrás das tropas, prisioneiros do próprio poder. Nós estamos livre no seio das massas, são eles que nos dão esperanças, são elas que nos dão força, são elas que nos apontam o rumo, são elas que nos conduzirão até a revolução. Quando estamos ao lado do povo estamos sempre certos, somos tão fortes que ninguém pode nos derrotar. Quando estamos separados das massas não somos nada, somos a poeira varrida pela História!

* * *

Discussão política, com a participação de todos os membros da comunidade.

ROBERTO: Nós não romantizamos a guerrilha, nem endeusamos as armas. Nosso objetivo sempre foi político. Quando a repressão estourou as entidades de massa, quando eles ocuparam cidades operárias com as tropas para prender grevistas e aterrorizar a população, quando as passeatas estudantis já não tinham o que fazer se não andar de um lado para outro no centro da cidade, então nós nos organizamos para oferecer uma opção, um caminho para o qual pudesse ser canalizado todo esse movimento de massas, criando uma alternativa de poder.

ANA: E isso tudo isolados do povo, escondidos nos aparelhos, querendo fazer a revolução só com estudantes e intelectuais?

ROBERTO: Junto com as massas a repressão acabaria localizando a gente. Prende um operário, ele entrega a base da fábrica, daí é aberto o coordenador do movimento de massas e logo acabam caindo todos os elos da corrente. Para sobrevivermos na luta era necessário nos organizarmos como revolucionários profissionais, vivendo unicamente para a causa.

CARLOS: Mas que adiantava sobreviver se o povo não participava da sua luta nem se interessava por suas ações?

ROBERTO: Numa outra fase do processo executaríamos ações de propaganda armada, como expropriarmos gêneros de primeira necessidade para distribui-los nas favelas, tomarmos supermercados para o povo saquear, ações desse tipo. Além disso, não esperávamos vencer o imperialismo só no nosso país, sabíamos que era impossível. Nossa idéia era desencadear a luta em larga escala, coordenada com os grupos guerrilheiros de outros países, como os tupamaros e o ERP.

ANA: E por que deu tudo errado?

ROBERTO: Foi uma corrida contra o tempo. Nós demoramos tanto para priorizar a luta armada que, quando começamos pra valer, já era tarde, o imperialismo estava bem preparado. Veja o caso do nosso país: eles investiram rios de dinheiro, criaram o milagre econômico, a classe média passou a apoiar o regime, nós acabamos sozinhos e agora a repressão está liquidando nossas Organizações, uma por uma.

GERALDO: Você não acha que foi uma tentativa desesperada?

ROBERTO: Até certo ponto, sim. Nós sabíamos que os militares utilizariam o estado totalitário para conduzir nosso país a um estágio capitalista mais avançado, com o predomínio absoluto das grandes empresas na economia, a colocação do ensino a serviço do capital, a propaganda fascistóide, tudo isso. Então, tínhamos de evitar que eles reestruturassem a sociedade dessa forma, caso contrário as possibilidades de uma revolução ficariam afastadas por um longo período. Foi por isso que arriscamos tudo, nenhum de nós queria esperar mais 20 ou 30 anos por outra situação potencialmente revolucionária.

ANA: Só que, com esse imediatismo pequeno-burguês, vocês acabaram quase todos dizimados e a ditadura ficou ainda mais forte…

ROBERTO: Putz, a companheira pega pesado! Olha, pelo menos uma coisa temos certeza que fizemos: nós lavamos a honra da esquerda, depois daquela rendição sem luta quando os militares tomaram o poder. Quem sabe se nós não pagamos as contas do passado, deixando o terreno limpo para que a juventude entre na luta sem traumas, sem nossa necessidade obsessiva de provar que também tínhamos coragem de sangrar por uma causa?

CARLOS: Mas, a repressão está liquidando as lideranças forjadas em décadas de luta. Assim a juventude ficará sem memória, sem referencial, vai ter de recomeçar tudo da estaca zéro.

VALDOMIRO: Não sei, eu às vezes sinto como se nós fôssemos uma geração maldita, que sentiu como nenhuma outra a necessidade de lutar mas não tinha opção correta para fazer. Parece que a História só nos conduziu a ruas sem saída, e mesmo assim brigamos, polemizamos, discutimos, fizemos o impossível para convencer uns aos outros, trazê-los para a posição que achávamos correta, sem perceber que todas elas acabariam num mesmo fracasso. Num enorme fracasso.

CARLOS: Pelo menos cada um de nós seguiu até o fim suas opções, sacrificou tudo por elas, se entregou à luta como nenhuma outra geração. Esse exemplo a gente deixa pro futuro.

VALDOMIRO: O futuro só fixará nossa derrota. Perdemos, logo estávamos errados. Para eles, esse vai ser o veredito da História.

* * *

Roberto se despede de cada um dos companheiros, pois decidiu voltar ao seu país. Todos estão emocionados. Até Ana o abraça, chorando. Depois que sai, comentam sua opção.

GERALDO: Ele sabe que a luta está perdida, não tem mais nenhuma esperança, então por que é que resolveu voltar? Está indo direto pro matadouro.

VALDOMIRO: O problema do Roberto é que ele perdeu os amigos, os irmãos, a companheira. Todos de quem gostava acabaram presos ou mortos. Ainda por cima, ele não vê a menor possibilidade das coisas melhorarem em nosso país nos próximos anos. Então, o Roberto chegou até a pensar num recuo, mas não viu nada do outro lado. Não havia mais lugar onde quisesse ficar, nem pessoa que o prendesse à vida. Acabou se solidarizando com os últimos da sua Organização. Vão lutar até o fim…

GERALDO: E acabar presos ou mortos.

VALDOMIRO: Ou mortos. O Roberto, pelo menos, acho que nunca vai cair vivo. Ele sabe muito bem o que encontrará nos porões.

GERALDO: É, estamos no tempo dos mártires.

VALDOMIRO: E muita gente ainda vai morrer à toa. Mas, para o Roberto, talvez seja mesmo a melhor opção. Gente como ele aguenta qualquer sacrifício no presente porque vive sonhando com o futuro, com o dia em que nosso país for libertado. Mas, quando descobre que a revolução não é mais pra amanhã nem pros próximos anos, já não consegue voltar pra rotina. A vidinha normal não significa mais nada para ele. O Roberto viveu com tanta intensidade seu sonho que tinha de morrer junto com esse sonho.

GERALDO: E você, ainda tem esperanças?

VALDOMIRO: Tenho pensado muito nisso e acredito que ainda valha a pena viver. Mesmo que as novas gerações não se interessem por nossas histórias, temos de insistir, procurar os meios para transmitir tudo que aprendemos. Afinal, poucos dos que participaram das últimas fases da política revolucionária sobreviveram. Temos de tornar conhecidas as lições que aprendemos com tanto sacrifício, para evitar que a juventude pague o mesmo preço por seu aprendizado. Para isso faz sentido voltar, faz sentido esperarmos o dia certo para voltar.

Obs.: trabalho em grupo feito para a cadeira de Linguística. Tínhamos de escolher uma obra artística, dela derivar uma história que permitisse destacar o jargão utilizado por determinado grupo social e apresentá-la por meio de audiovisual, programa radiofônico, filme, teleteatro, etc. Sugeri a canção do Vandré sobre exilados porque era um assunto na ordem do dia e porque seria fácil trabalharmos em cima do jargão da esquerda. Fiquei com a tarefa de criar o script. E acabei me envolvendo muito com as situações enfocadas, por estarem próximas da minha vivência. O vídeo despertou interesse, causando polêmica.

A FORÇA DE QUE PRECISO

“Quanto mais cai, mais levanta,
mil vezes já foi ao chão.
De pé! Mil vezes já foi ao chão.
Povo levanta, na hora da decisão!”
(tema de Arena conta Zumbi)

Alguns companheiros e amigos virtuais torceram o nariz quando lhes comuniquei a intenção de candidatar-me a vereador, ou ao receberem os primeiros textos de campanha. Como se o poder fosse um ente diabólico capaz de corromper instantaneamente qualquer indivíduo que não se mantiver a uma distância segura, mesmo alguém que esteja há décadas travando o bom combate.

Foi o mesmo quando me apresentei como anticandidato à Comissão da Verdade. Antes mesmo de saberem os nomes cogitados, alguns já decidiram que não passava de um engana-trouxas e seria inútil qualquer tentativa de torná-la mais… verdadeira.

O problema é que só devemos descartar descartar quaisquer possibilidades de luta quando temos melhores ao nosso dispor, não como justificativa para cruzar os braços e não fazer nada.

Fico me lembrando de desabafo célebre do Caetano Veloso contra aqueles que vaiavam sua “É proibido proibir”, em 1968, no Tuca: “Nós tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas!”.

E também desta estrofe do belíssimo e pouco conhecido tributo do Geraldo Vandré a Che Guevara (mais sobre ele aqui):

Quem afrouxa na saída
Ou se entrega na chegada
Não perde nenhuma guerra
Mas também não ganha nada

O certo é que eu tento romper o bloqueio que ora me impede de ter uma atuação mais contundente. Sei que sou capaz de confrontar o inimigo como poucos, nas batalhas de opinião em que podemos conquistar corações e mentes para nossas bandeiras. Então, como em 1968, decidi me aproximar cada vez mais do centro da luta, pois sinto que é aí o meu lugar e desta vez estou 100% pronto para o que der e vier.

Já não me basta usar a internet como um muro de lamentações cada vez que ocorrem episódios chocantes como a barbárie no Pinheirinho. Teclar não será mais para mim o substituto de agir.

Quem quiser me apoiar, que o faça agora, pois é agora que mais preciso. Eis as possibilidades:

  • batalhar com os conhecidos (tendo-os influentes…) espaços para mim na mídia convencional ou na alternativa, pois tenho o que falar e o que falo vai além da promoção pessoal, já que sempre destaco as lutas, causas e posturas da esquerda;
  • divulgar minha carta destinada ao eleitorado em geral (copiar daqui);
  • imprimir e distribuir por conta própria a carta e/ou o selinho de campanha que pode ser copiado do próprio blogue (aqui);
  • divulgar meu manifesto endereçado aos companheiros de esquerda (copiar daqui );
  • divulgar o vídeo que, solidariamente e por iniciativa própria, o poeta Marcelo Roque criou (disponibilizado em http://youtu.be/f76HdD34Arg);
  • doar alguma quantia, mesmo mínima, para a campanha (as intruções estão na coluna da direita do blogue).
Uma das frases cinematográficas mais marcantes para mim é a de Paul Newman no sumário do julgamento de O Veredicto (d. Sidney Lumet, 1982), um filme que recomendo a todos os companheiros: “Aje como se tivesse fé, e a fé te será dada”.
As vitórias mais improváveis podem ocorrer, sim –desde que acreditemos, arregacemos as mangas e lutemos até o fim. Foi o que o Caso Battisti comprovou.

SE HÁ CENSURA, EU A DESAFIO. COMO ANTES. COMO SEMPRE!

Não sei quem e por que está censurando meus blogues pessoais: o Náufrago da Utopia e o Celso Lungaretti – O Rebate, que mantenho de longa data, e o Diário de Campanha do Lungaretti, que criei para armazenar material correlato à minha candidatura.
 
O certo é que, nesta 4ª feira (5) inteira, os três  estão rejeitando um texto no qual analisei as perspectivas eleitorais e pedi o apoio dos companheiros (doações e ajuda na divulgação, não votos!).

Sendo tão acentuada a desigualdade de recursos em relação aos principais partidos –minha campanha é paupérrima–, se nem à blogosfera eu puder recorrer e se nem uma força dos amigos eu puder pedir, que chance terei? Nenhuma, claro.

Então, não me conformo nem me conformarei jamais com tal restrição, extremamente antidemocrática, provenha de quem provier.

Consegui postar o mesmíssimo texto em dois espaços de amigos e peço a todos que o acessem lá (clique aqui ou aqui). Constatarão quão aberrante foi terem colocado um filtro qualquer para impedir que eu ponha no ar uma mensagem tão inofensiva.

E, se este desafio que estou lançando me acarretar mais alguma pendenga, arcarei com as consequências, desde já antecipando que lutarei até o fim, como sempre. 

 
Como cantou certa vez o Vandré: “porque sou forte e tenho razão”.