Geraldo Vandré
VEJA O VÍDEO DA CANÇÃO "CHE", INTERPRETADA POR GERALDO VANDRÉ.
E já postara esta autêntica preciosidade no início de 2012: tratava-se de um link para baixar a música, mas acabou sumindo. Agora, alguma boa alma a disponibilizou no Youtube e eu pude trazê-la de volta para cá.
Trata-se de uma canção dedicada a Che Guevara, na intepretação do Geraldo Vandré e Trio Maraya.
“…na verdade, eram duas músicas, conforme lembra Lúcia, mulher de Marconi [integrante do Trio Maraya]. ‘O Marconi fez ela instrumental. Quando perguntavam, ele dizia que era homenagem aos gaúchos, para não se complicar’, lembra, rindo. (…) E a música de Marconi –sem sequer ter letra– foi censurada.
Segundo Lúcia, Vandré sempre quis pôr letra, mas Marconi nunca aceitou. E assim nasceria um segundo Che, quando o grupo todo foi para a Europa. Tempos difíceis, pré-AI-5, clima de vigilância no ar. Os cartões enviados da Bulgária chegavam abertos. ‘O Marconi acabou fazendo uma outra melodia, e o Geraldo fez a letra.'”
Cheguei a cogitar que se tratasse da música de Walter Franco que Vandré defendeu num Festival Universitário da Canção Popular. Mas, esta era outra, sobre a qual encontrei o seguinte depoimento do blogueiro Waldir Mengardo:
“No Festival Universitário da Tupi, em 1968, Geraldo Vandré, junto com o Trio Maraya, defendeu uma música de Walter Franco chamada Não se queima um sonho. Era uma alegoria a Che Guevara que foi classificada na sua eliminatória e depois sumiu na final do Festival sem nenhuma explicação. (…) Era mais ou menos assim: Seu sonho sem mortalha/ Cercado de solidão/ Eu trago bem guardado/ Na espera e no coração/ Vem oh! meu companheiro Che/ seu sonho quero lhe dar…“
Quem afrouxa na saída
PARA NUNCA ESQUECERMOS QUEM SOMOS E O QUE SOMOS – 4
COMPANHEIRO MANÉ? PRESENTE! AGORA E SEMPRE!
Presos políticos visitados por d. Eugênio Sales, no RJ; o Mané é o de camisa xadrez. |
Eu o conheci quando organizava a Frente Estudantil Secundarista na zona Leste paulistana, em 1968. Estudava, se bem me lembro, num colégio da Vila Zelina. Logo se tornou um dos líderes do nosso movimento.
Suas convicções revolucionárias se expressavam também na música: tocava violão e cantava muito bem, principalmente as canções do Geraldo Vandré.
É assim que sempre me lembrarei do Mané, romântico, esperançoso, convicto. Sua sinceridade era transparente e comovente.
Mané e Gilney Viana no início da greve de fome pela anistia |
De quase uma centena de estudantes aglutinados na nossa Frente, apenas oito nos dispusemos a correr os riscos da luta armada; Mané não hesitou nem um instante.
Disse que meu livro tinha mostrado o inferno pelo qual passaram jovens idealistas como ele e o Massafumi Yoshinaga (sobre quem escrevi aqui). E também que preferia ficar distante daquilo que o levava a recordar momentos dolorosos. Achei que fosse uma forma cifrada de dizer que eu não o deveria procurar, entendendo o seu contato como uma manifestação de solidariedade.
Os versos que melhor serviriam como síntese definitiva da sua trajetória, contudo, o grande Paulo Vanzolini já escrevera antes de mim: “Ali onde eu chorei,/ qualquer um chorava./ Dar a volta por cima que eu dei,/ quero ver quem dava!”.
UMA TENTATIVA DE DECIFRAR O ENIGMA VANDRÉ
Trata-se de uma tentativa de decifrar o enigma Vandré, empreendida com muito talento e dedicação pelos então aprendizes, hoje provavelmente já exercendo a profissão. Torço para que nela obtenham muito sucesso, sem perderem o idealismo jamais!
com ele? Não sei.
Só sei que esse trapo,
esse homem foi um rei”
(“Tributo a um Rei Esquecido”, Benito Di Paula)
Eu era um adolescente começando a me interessar pela política quando uma música me atingiu em cheio: “Canção Nordestina”, do Geraldo Vandré, com aquele seu grito lancinante (“…e essa dor no coração/ aaaaaaaAAAAAAAAIIII!!!!, quando é que vai acabar?”) reverberando em todo o meu ser.
Foi meu primeiro ídolo. Acompanhei a consagração da “Disparada” no Festival da Record de 1966, amaldiçoando o Jair Rodrigues por abrir um sorriso bocó no trecho mais dramático (“…porque gado a gente marca,/ tange, ferra, engorda e mata,/ mas com gente é diferente”).
Depois, nos estertores d’O Fino, o programa passou a ser conduzido, uma em cada quatro semanas, pelo Vandré (nas outras, se bem me lembro, os apresentadores eram Chico Buarque/Nara Leão, Elis Regina/Jair Rodrigues e Gilberto Gil/Caetano Veloso).
Num de seus programas, o Vandré declamou o “Poema da Disparada”, sobre a modorrenta mansidão da boiada, até que um simples mosquito, picando um boi, provoca o estouro, e nada volta a ser como antes. Belíssimo.
Aí o Vandré brigou com a TV Record e saiu da emissora, alegando que um desses seus programas havia sido censurado pelos patrões, por temerem os milicos.
Veio o Festival da Record de 1967 e Vandré, com sua “De Como Um Homem Perdeu o Seu Cavalo e Continuou Andando” (“Ventania”), virou alvo de críticas e maledicências ininterruptas nas emissoras da Rede Record. Diziam até que ele havia contratado uma turba para vaiar Roberto Carlos.
“Ventania” não era mesmo uma segunda “Disparada”, mas, sem toda essa campanha adversa, certamente teria obtido classificação melhor do que o 10º lugar.
Aconteceu então aquele 1º de Maio esquisito, em 1968, quando o PCB garantiu ao governador Abreu Sodré que ele poderia discursar tranqüilamente na Praça da Sé.
O ingênuo acreditou e, mal iniciara sua arenga, recebeu uma nuvem de pedradas dos trabalhadores do ABC e de Osasco, organizados pela esquerda autêntica.
Sodré correu para se refugiar na Catedral… e Vandré foi fotografado ajudando Sua Excelência a escafeder-se!
A foto saiu na capa da Folha da Tarde e fez com que muitos companheiros virassem as costas ao Vandré.
No final de junho/68, os operários de Osasco tomaram pela primeira vez fábricas no Brasil (em plena ditadura!). A reação foi fulminante, com a ocupação militar da cidade.
Os estudantes, por sua vez, ocuparam a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, para mantê-la aberta durante as férias de julho, prestando apoio à greve de Osasco.
O Vandré apareceu lá numa noite em que estava marcada uma assembléia para tratar desse apoio estudantil à greve. Foi hostilizado pelos universitários. Lembro-me de uma fulaninha histérica, gritando sem parar: “traidor!”, “traidor!”.
Eu estava lá com companheiros secundaristas da Zona Leste, todos admiradores do Vandré. Então, nós nos apresentamos e fizemos o convite para vir conosco ao bar da esquina, oferecendo-lhe a oportunidade para retirar-se de lá com dignidade, e não como um cão escorraçado.
Bebemos, papeamos horas a fio, apareceu um violão e rolaram algumas músicas.
Lá pelas tantas, o Vandré mostrou uma letra rascunhada e cheia de correções, que ele escrevera numa daquelas folhas brancas de embrulhar bengalas (pão). Tratava-se da “Caminhando”, que tivemos o privilégio de conhecer ainda em gestação.
É importante notar que ele fez a “Caminhando” exatamente para responder aos esquerdistas que o estavam hostilizando. Quis lhes dizer que continuava acreditando nos mesmos valores, que em nada havia mudado.
Vandré antigo: no front musical contra o imperialismo
Na verdade havia amizade entre ambos, tanto que o Vandré, meses mais tarde, encontraria abrigo no Palácio dos Bandeirantes, onde o próprio Sodré o escondeu quando a repressão estava no seu encalço.
Mas, não ficava bem para um artista de esquerda admitir publicamente que mantinha relações perigosas com um governador da Arena, partido de apoio à ditadura.
“HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO”
Naquele Festival Internacional da Canção da Rede Globo, “Caminhando” foi uma das cinco classificadas de São Paulo para a final nacional no Rio. O que chamou mais a atenção por aqui foi a não-classificação de “Questão de Ordem”, do Gil, e o desabafo de Caetano Veloso, que acabou retirando sua “É Proibido Proibir” do festival em solidariedade ao amigo (depois de detonar o júri “simpático, mas incompetente” com um discurso célebre, que acabou sendo lançado em disco com o nome de “Ambiente de festival”).
Intervalo da gravação do ‘disco do exílio’ |
No Rio, entretanto, o clima era outro. Numa manifestação de rua, a repressão acabara de submeter estudantes a terríveis indignidades (os soldados chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças). Isto despertou indignação generalizada na cordialíssima cidade maravilhosa.
O III FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram “Caminhando” como desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em SP. Quando ele reapresentou a música, já como 2ª colocada, os moradores de Copacabana abriram as janelas de seus apartamentos e colocaram a TV no volume máximo. Cantaram juntos, expressando toda sua raiva da ditadura.
Reencontrei Vandré por volta de 1980, quando eu estava colaborando com várias revistas de música. Propus-lhe uma entrevista, que ele não quis dar: “Não tenho disco nenhum para lançar, para que falar à imprensa?”.
Acabamos indo (eu e minha companheira de então) ao apartamento do Vandré na rua Martins Fontes e papeando durante horas — mas em off, ou seja, com o compromisso de nada publicar.
Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo.
O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.
A censura finalmente liberara “Caminhando”, que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar ao estrelato junto com a música, seria assassinado.
Insistiu muito em que não se apresentaria no Brasil enquanto o País não oferecesse garantias legais aos seus cidadãos. Realmente, algum tempo depois, soube que ele marcara um show para uma cidade paraguaia fronteiriça com o Brasil. Quem foi lá vê-lo? Brasileiros, claro…
Quando estudava na ECA/USP, eu fiz um trabalho de teleteatro de meia hora baseado nos personagens e no clima da música “Das Terras de Benvirá” — sobre uma comunidade de refugiados brasileiros decidindo se já era hora de voltar para a patriamada ou não. Foi a minha pequena contribuição àquele momento (1979) em que a anistia dos companheiros presos e exilados estava na ordem do dia.
Conheço quase toda a obra do Vandré. E considero o LP francês, Das terras de Benvirá, uma pungente obra-prima.
Quanto à promiscuidade com milicos depois de sua volta do exílio, a canção composta em homenagem à FAB e as declarações negando ter sido torturado, a minha opinião é que ele não conseguiu suportar a realidade de que não se comportara heroicamente.
Em várias músicas (como “Terra Plana”, “Despedida de Maria” e “Bonita”), o personagem central era um guerrilheiro. As canções, narradas sempre na primeira pessoa. Ou seja, saltava aos olhos tratar-se do papel que sonhava ele mesmo vir a representar na vida real.
Mas, claro, o Vandré não foi para a guerrilha nem parece ter passado pela prova de fogo nos porões da ditadura com o destemor desejado. Além disto, não aguentou viver muito tempo fora do Brasil e voltou com o rabo entre as pernas. Com certeza, negociou com os militares para poder desembarcar “sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor matar” (“Canção Primeira”).
De qualquer forma, aquele artista que tanto admiramos foi assassinado pelos déspotas, da mesma forma que Victor Jara e Garcia Lorca. Sobrou um homem sofredor, que merece nossa compreensão.
LEIA TAMBÉM OS ARTIGOS SOBRE A ENTREVISTA DO VANDRÉ AO “GLOBO NEWS” (clique p/ abrir):
VANDRÉ: DILACERANTE
VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS
AINDA SOBRE O ARTISTA MÍTICO QUE HABITA A MEMÓRIA DE SUA CANÇÃO
ELE DESATINOU. DE NOVO!
Ele já aceitou servir como exemplo de bom menino |
A censura deste disco era ruim. A das biografias é boa? |
“Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado, mas continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado“.
Ora, o cidadão com o qual ele se preocupa e cujo direito quer ver priorizado não é um cidadão qualquer, mas sim uma celebridade. Quem escreve as biografias dos coitadezas anônimos?
E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica?
VEJA DOCUMENTÁRIO SOBRE VANDRÉ NA ÍNTEGRA: "O QUE SOU NUNCA ESCONDI"
TELEDRAMA DO LUNGARETTI, BASEADO NUMA CANÇÃO DO VANDRÉ
“O anel que tu me deste,
eu guardei pra me ajudar,
construi numa viola
de madeira o teu altar
O amor que tu me tinhas,
eu roubei pra me salvar,
toda hora em que a danada
da saudade me pegar
Joema dos olho claros,
bem verdes da cor do mar,
me dava tanta alegria
que eu não preciso sonhar
Basta me lembrar agora
das coisas que deixei lá,
Joema, sempre esperando
na praia do grande mar
Valdomiro das estrelas
não podia se encurvar,
tinha tudo que queria,
dizia tudo a pintar
Olhando pro céu de frente,
perdido sempre em chegar,
Valdomiro das estrelas
pedia para voltar
Que faço agora, Maria?
Que faço agora, diz já!
Se longe, eu ouço hoje
as coisas que vão voltar
Me diz, quem vem comigo
Geração Maldita é um teledrama que criei, inspirado no clima e personagens da música “Das Terras de Benvirá”, de Geraldo Vandré; foi exibido em outubro/1978 na ECA/USP.
CARLOS: Todo mundo preso! (sobressalto geral; Valdomiro erra pincelada no quadro)
GERALDO: Porra, eu já te disse pra não fazer esse tipo de brincadeira! Vai ficar toda hora lembrando as coisas pra gente, vai?
CARLOS: Que é isso, Geraldo, calminha! Não vamos fazer nenhuma tragédia por isso, né? O que passou, passou, ficou pra trás, então temos de encarar tudo com naturalidade. É a única maneira de sair dessa e partir pra outra, né? Então vamos lá, companheiro, abre um sorriso pra gente ver, vá!
GERALDO: E eu vou achar graça do que, da condição da gente aqui, das últimas notícias do nosso país?
VALDOMIRO: Do meu quadro, que você estragou?
CARLOS: Olha, Geraldo, nós aqui não poderíamos estar melhor, afinal não fomos expulsos até hoje. Nosso país (tom irônico), dizem que está virando uma grande potência, a gente deveria até festejar. E (para Valdomiro) esse teu quadro é a milésima versão da Lúcia nas praças e ruas da patriamada. Então, ainda sobram umas 999 pra você ficar aí todo embasbaco e macambúzio, sabe?, olhando a tela como se fosse a Virgem no altar. Só falta você se ajoelhar e beijar o cavalete.
VALDOMIRO: Tá, vai à merda! O que é que um liderzinho estudantil de subúrbio entende de arte? É só pintar um monte de proletas dando com as ferramentas na cabeça de uns burguesões…
CARLOS: É isso mesmo, companheiro! De preferência, uns burguesões de fraque e cartola, alisando a ponta dos bigodes, assim (imita o gesto).
VALDOMIRO: Então, bastaria eu partir prum realismo socialista desbragado pra você logo dizer que sou o maior pintor revolucionário do 3º Mundo?
GERALDO (abrupto): Como é, dá pra você me dizer se trouxe o jornal?
CARLOS: Olha, na edição da tarde tem uma notinha parecida com a da manhã. Diz que oito foram presos e dois feridos, mas não traz o nome de ninguém.
ANA: Mas não deve ser nada não, Geraldo, afinal existem tantos grupos atuando lá na Capital, por que teria de ser logo o do Otávio?
GERALDO: É, mas é uma merda estar aqui, longe de tudo, a gente fica o tempo todo se preocupando. Quando menos espera, abre o jornal e vê que pegaram um companheiro, um amigo…
VALDOMIRO: O que a gente podia fazer, já fez. Se ficássemos lá, com todo aquele clima de luta armada, nuncia iriam deixar que nós continuássemos com os movimentos de cultura popular. Iríamos ser vigiados o tempo todo, perseguidos, presos, poderíamos até virar presuntos e a culpa ser jogada em cima de um Sabado Dinotos qualquer. E nem pra clandestinidade iríamos poder passar, todo mundo já viu nossa cara no jornal, na TV. Iria ser pior pra nós e pros companheiros, que teriam de ficar tomando conta da gente.
CARLOS: Não é nada disso, Valdo, que nada! Vamos voltar agora mesmo que eu atiro livros na cabeça dos reaças, você joga a coleção de Lúcias, o Geraldo atira os discos, num instante a gente faz a primeira revolução tropicalista da História!
ANA: E eu, o que é que eu faço?
CARLOS: Ah, você atira as canetas dos teus alunos. Nunca te contaram que a pena é mais afiada que a espada?
VALDOMIRO: E pra você isso vai ser uma revolução ou uma comédia de pastelão?
CARLOS: As duas coisas juntas, afinal estamos falando de um país latino-americano, né?
Geraldo recordando a sua saída do país.
JOEMA: É a tua oportunidade, você tem de partir, amor!
GERALDO: Mas, eu posso me esconder na casa da tua irmã, eles não vão me procurar lá…
JOEMA: Ela não concorda com nossas idéias, como é que eu vou pedir que ela se arrisque por nós?! E tem também os vizinhos, tem aquele capitão que mora na esquina, tem os parentes que falam demais, você acabaria preso e complicando minha família!
GERALDO: Tem de haver um jeito de eu poder ficar!
JOEMA: Vai ser sempre um risco inútil, benzinho. Você mesmo me ensinou que o importante é a causa, não as pessoas. Agora é a hora de você se sacrificar, se preservar para o futuro. Afinal, você é um símbolo, teus versos vão continuar inspirando o pessoal daqui. E um dia você ainda vai voltar para cantar nossa vitória, junto com o povo na rua. Você precisa viver para esse dia, amor!
GERALDO: Mas, como eu posso partir e deixar você e o Otávio correndo perigo aqui?
JOEMA: Você me deu os primeiros livros e me convidou para aquelas palestras, quando você quis que eu participasse da tua vida e da tua luta. Você já deveria saber que um dia a gente poderia ter de se separar. Mas não se preocupa, não, Geraldo! Olha, eu tomo conta do Otávio porque ele é teu irmão, ele toma conta de mim porque sou tua companheira, então, no fim, não acontece nada pra nenhum de nós dois, tá, benzinho?! Isso, dá um sorriso, eu não quero me lembrar de você tão sério e carrancudo!
GERALDO: Se fosse tudo tão simples…
GERALDO: Por mim, pode trazer quem precisar, a gente sempre se ajeita.
VALDOMIRO: É, tudo bem.
ANA: Mas, pra mim não está nada bem! Solidariedade, solidariedade, é somente nisso que vocês pensam, não? Que importam as leis de exceção, as torturas, a destruição das entidades de massa? Vocês esquecem num instante que estão aqui por causa dos porralocas dos militaristas! Só querem saber de exibir sua solidariedade revolucionária, seu paternalismo pequeno-burguês, ajudar o coitadinho, pobrezinho, que até ontem estava botando fogo no mundo!
ANA: Acorda, Ju, acorda!
JÚLIO: Hã, hã, o quê?
ANA: Tocaram a campaínha!
JÚLIO: Mas agora, porra! E que horas… mas são quase quatro horas!
ANA: Meu amor, meu amor, e se for a repressão? Eu disse pra você não ficar dando abrigo pra esse pessoal da guerrilha!
JÚLIO: Mas, que é isso, meu bem? Eu tinha de ajudar, a solidariedade revolucionária… (novo e longe toque de campaínha). Mas, não deve ser nada, não. Fica aqui que eu volto já.
VOZ: Onde é que ele está? Diz logo, filho da puta!
VOZ: Aqui! (fuzilaria)
JÚLIO: Não! Não!
VOZ: Algema ela! Bota o capuz!
VOZ: Quem contatava seu marido? Quando ele ia ter o próximo ponto? Você também conhece os aparelhos? Fala, sua vaca, fala! (Ana grita, ofega)
Ana e Valdomiro conversando, na calmaria subsequente ao ato sexual.
ANA: Você tinha razão. Era por causa do Júlio. Nem sei se por causa dele mesmo ou da minha vida com ele. Era o que vocês chamariam de uma vidinha pequeno-burguesa, mas eu gostava. Gostava de viver sem susto, cuidando da casa, das crianças, do meu jardinzinho. Toda a rotina de uma dona-de-casa alienada. E daí? Não nasci pra grandes aventuras, nunca pensei em mim transformando o mundo. Acho que casei com o Júlio porque ele era seguro, tranquilo, tomava todas as decisões. Sabia o que era melhor pra nós dois.
VALDOMIRO: E mesmo assim vocês entraram pro partido?
ANA: Bom, até o golpe militar a gente não se interessava pela política. Aí foram todas aquelas prisões, perseguições… o Júlio viajando a serviço e conhecendo aqueles cafundós… tanta miséria, tanta injustiça… No fundo, no fundo, nem ele nem eu seríamos revolucionários se vivêssemos numa democracia de 1º Mundo. Quanto muito entraríamos num partido de centro-esquerda, sei lá… Mas, é que no nosso país a gente não tinha opção. Ou ficava quietinha engolindo tudo que o governo fazia ou entrava pra esquerda. Então, o Júlio acabou entrando e me levando junto.
VALDOMIRO: E acabamos todos no mesmo barco, lambendo as feridas e esperando a hora de voltar…
ANA: Depois de tudo isso eu já nem sei se vale a pena voltar. Se não fossem as crianças…
VALDOMIRO: Nem pense nisso, Aninha. A ditadura não é eterna. A gente ainda vai ver todo mundo feliz, todo mundo rindo, todo mundo se amando. Você precisa voltar pra ensinar a seus filhos, a seus alunos. Explicar pras novas gerações o quanto vale a liberdade. Tudo o que passamos não vai valer nada se a gente não fizer com que essa seja a última ditadura. Se a gente não despertar o povo pra defesa dos seus direitos, pra que o povo nunca mais aceite um regime como esse.
ANA: Do jeito como você fala, parece que a gente vai voltar e encontrar o país do jeitinho que era. Mas, será que com todos esses anos de lavagem cerebral eles não vão conseguir mudar as pessoas? Será que quando a gente voltar o povo ainda vai se lembrar de nós, vai querer ouvir o que a gente tem pra dizer?
VALDOMIRO: Não sei, francamente não sei. Até agora eu vivi para minha obra, e fiz da minha obra o instrumento para despertar as pessoas para a vida, para a harmonia, para a felicidade. Eu entrei na política para aprender mais sobre a vida, para ter coisas mais importantes para transmitir. Se tudo isso não serviu para nada, se quando eu voltar ninguém mais estiver interessado num futuro melhor, em ver na arte o que o mundo deveria ser e depois transformar o mundo… aí, não sei, acho que minha vida terá sido completamente inútil (revê sua dedicação à arte, seus esforços para expressar uma verdade maior nas telas).
CARLOS: Eles estão sozinhos, trancados nos gabinetes, escondidos atrás das tropas, prisioneiros do próprio poder. Nós estamos livre no seio das massas, são eles que nos dão esperanças, são elas que nos dão força, são elas que nos apontam o rumo, são elas que nos conduzirão até a revolução. Quando estamos ao lado do povo estamos sempre certos, somos tão fortes que ninguém pode nos derrotar. Quando estamos separados das massas não somos nada, somos a poeira varrida pela História!
ANA: E isso tudo isolados do povo, escondidos nos aparelhos, querendo fazer a revolução só com estudantes e intelectuais?
ROBERTO: Junto com as massas a repressão acabaria localizando a gente. Prende um operário, ele entrega a base da fábrica, daí é aberto o coordenador do movimento de massas e logo acabam caindo todos os elos da corrente. Para sobrevivermos na luta era necessário nos organizarmos como revolucionários profissionais, vivendo unicamente para a causa.
CARLOS: Mas que adiantava sobreviver se o povo não participava da sua luta nem se interessava por suas ações?
ROBERTO: Numa outra fase do processo executaríamos ações de propaganda armada, como expropriarmos gêneros de primeira necessidade para distribui-los nas favelas, tomarmos supermercados para o povo saquear, ações desse tipo. Além disso, não esperávamos vencer o imperialismo só no nosso país, sabíamos que era impossível. Nossa idéia era desencadear a luta em larga escala, coordenada com os grupos guerrilheiros de outros países, como os tupamaros e o ERP.
ANA: E por que deu tudo errado?
ROBERTO: Foi uma corrida contra o tempo. Nós demoramos tanto para priorizar a luta armada que, quando começamos pra valer, já era tarde, o imperialismo estava bem preparado. Veja o caso do nosso país: eles investiram rios de dinheiro, criaram o milagre econômico, a classe média passou a apoiar o regime, nós acabamos sozinhos e agora a repressão está liquidando nossas Organizações, uma por uma.
GERALDO: Você não acha que foi uma tentativa desesperada?
ROBERTO: Até certo ponto, sim. Nós sabíamos que os militares utilizariam o estado totalitário para conduzir nosso país a um estágio capitalista mais avançado, com o predomínio absoluto das grandes empresas na economia, a colocação do ensino a serviço do capital, a propaganda fascistóide, tudo isso. Então, tínhamos de evitar que eles reestruturassem a sociedade dessa forma, caso contrário as possibilidades de uma revolução ficariam afastadas por um longo período. Foi por isso que arriscamos tudo, nenhum de nós queria esperar mais 20 ou 30 anos por outra situação potencialmente revolucionária.
ANA: Só que, com esse imediatismo pequeno-burguês, vocês acabaram quase todos dizimados e a ditadura ficou ainda mais forte…
ROBERTO: Putz, a companheira pega pesado! Olha, pelo menos uma coisa temos certeza que fizemos: nós lavamos a honra da esquerda, depois daquela rendição sem luta quando os militares tomaram o poder. Quem sabe se nós não pagamos as contas do passado, deixando o terreno limpo para que a juventude entre na luta sem traumas, sem nossa necessidade obsessiva de provar que também tínhamos coragem de sangrar por uma causa?
CARLOS: Mas, a repressão está liquidando as lideranças forjadas em décadas de luta. Assim a juventude ficará sem memória, sem referencial, vai ter de recomeçar tudo da estaca zéro.
VALDOMIRO: Não sei, eu às vezes sinto como se nós fôssemos uma geração maldita, que sentiu como nenhuma outra a necessidade de lutar mas não tinha opção correta para fazer. Parece que a História só nos conduziu a ruas sem saída, e mesmo assim brigamos, polemizamos, discutimos, fizemos o impossível para convencer uns aos outros, trazê-los para a posição que achávamos correta, sem perceber que todas elas acabariam num mesmo fracasso. Num enorme fracasso.
CARLOS: Pelo menos cada um de nós seguiu até o fim suas opções, sacrificou tudo por elas, se entregou à luta como nenhuma outra geração. Esse exemplo a gente deixa pro futuro.
VALDOMIRO: O futuro só fixará nossa derrota. Perdemos, logo estávamos errados. Para eles, esse vai ser o veredito da História.
Roberto se despede de cada um dos companheiros, pois decidiu voltar ao seu país. Todos estão emocionados. Até Ana o abraça, chorando. Depois que sai, comentam sua opção.
GERALDO: Ele sabe que a luta está perdida, não tem mais nenhuma esperança, então por que é que resolveu voltar? Está indo direto pro matadouro.
VALDOMIRO: O problema do Roberto é que ele perdeu os amigos, os irmãos, a companheira. Todos de quem gostava acabaram presos ou mortos. Ainda por cima, ele não vê a menor possibilidade das coisas melhorarem em nosso país nos próximos anos. Então, o Roberto chegou até a pensar num recuo, mas não viu nada do outro lado. Não havia mais lugar onde quisesse ficar, nem pessoa que o prendesse à vida. Acabou se solidarizando com os últimos da sua Organização. Vão lutar até o fim…
GERALDO: E acabar presos ou mortos.
VALDOMIRO: Ou mortos. O Roberto, pelo menos, acho que nunca vai cair vivo. Ele sabe muito bem o que encontrará nos porões.
GERALDO: É, estamos no tempo dos mártires.
VALDOMIRO: E muita gente ainda vai morrer à toa. Mas, para o Roberto, talvez seja mesmo a melhor opção. Gente como ele aguenta qualquer sacrifício no presente porque vive sonhando com o futuro, com o dia em que nosso país for libertado. Mas, quando descobre que a revolução não é mais pra amanhã nem pros próximos anos, já não consegue voltar pra rotina. A vidinha normal não significa mais nada para ele. O Roberto viveu com tanta intensidade seu sonho que tinha de morrer junto com esse sonho.
GERALDO: E você, ainda tem esperanças?
VALDOMIRO: Tenho pensado muito nisso e acredito que ainda valha a pena viver. Mesmo que as novas gerações não se interessem por nossas histórias, temos de insistir, procurar os meios para transmitir tudo que aprendemos. Afinal, poucos dos que participaram das últimas fases da política revolucionária sobreviveram. Temos de tornar conhecidas as lições que aprendemos com tanto sacrifício, para evitar que a juventude pague o mesmo preço por seu aprendizado. Para isso faz sentido voltar, faz sentido esperarmos o dia certo para voltar.
A FORÇA DE QUE PRECISO
mil vezes já foi ao chão.
De pé! Mil vezes já foi ao chão.
Povo levanta, na hora da decisão!”
Alguns companheiros e amigos virtuais torceram o nariz quando lhes comuniquei a intenção de candidatar-me a vereador, ou ao receberem os primeiros textos de campanha. Como se o poder fosse um ente diabólico capaz de corromper instantaneamente qualquer indivíduo que não se mantiver a uma distância segura, mesmo alguém que esteja há décadas travando o bom combate.
Foi o mesmo quando me apresentei como anticandidato à Comissão da Verdade. Antes mesmo de saberem os nomes cogitados, alguns já decidiram que não passava de um engana-trouxas e seria inútil qualquer tentativa de torná-la mais… verdadeira.
O problema é que só devemos descartar descartar quaisquer possibilidades de luta quando temos melhores ao nosso dispor, não como justificativa para cruzar os braços e não fazer nada.
Fico me lembrando de desabafo célebre do Caetano Veloso contra aqueles que vaiavam sua “É proibido proibir”, em 1968, no Tuca: “Nós tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas!”.
E também desta estrofe do belíssimo e pouco conhecido tributo do Geraldo Vandré a Che Guevara (mais sobre ele aqui):
“Quem afrouxa na saída
Ou se entrega na chegada
Não perde nenhuma guerra
Mas também não ganha nada“
Já não me basta usar a internet como um muro de lamentações cada vez que ocorrem episódios chocantes como a barbárie no Pinheirinho. Teclar não será mais para mim o substituto de agir.
Quem quiser me apoiar, que o faça agora, pois é agora que mais preciso. Eis as possibilidades:
- batalhar com os conhecidos (tendo-os influentes…) espaços para mim na mídia convencional ou na alternativa, pois tenho o que falar e o que falo vai além da promoção pessoal, já que sempre destaco as lutas, causas e posturas da esquerda;
- divulgar minha carta destinada ao eleitorado em geral (copiar daqui);
- imprimir e distribuir por conta própria a carta e/ou o selinho de campanha que pode ser copiado do próprio blogue (aqui);
- divulgar meu manifesto endereçado aos companheiros de esquerda (copiar daqui );
- divulgar o vídeo que, solidariamente e por iniciativa própria, o poeta Marcelo Roque criou (disponibilizado em http://youtu.be/f76HdD34Arg);
- doar alguma quantia, mesmo mínima, para a campanha (as intruções estão na coluna da direita do blogue).
SE HÁ CENSURA, EU A DESAFIO. COMO ANTES. COMO SEMPRE!
Sendo tão acentuada a desigualdade de recursos em relação aos principais partidos –minha campanha é paupérrima–, se nem à blogosfera eu puder recorrer e se nem uma força dos amigos eu puder pedir, que chance terei? Nenhuma, claro.
Então, não me conformo nem me conformarei jamais com tal restrição, extremamente antidemocrática, provenha de quem provier.
Consegui postar o mesmíssimo texto em dois espaços de amigos e peço a todos que o acessem lá (clique aqui ou aqui). Constatarão quão aberrante foi terem colocado um filtro qualquer para impedir que eu ponha no ar uma mensagem tão inofensiva.
E, se este desafio que estou lançando me acarretar mais alguma pendenga, arcarei com as consequências, desde já antecipando que lutarei até o fim, como sempre.