greve geral de 1917

LUNGARETTI PERGUNTA: "CADÊ A MOOCA?"

O imponente Cotonifício Crespi abriu falência em 1964…
O belíssimo artigo de Apollo Natali (vide aqui), meu velho companheiro de batente na Agência Estado e amigo querido há quase três décadas, mexeu com minhas lembranças. Se suas raízes estão fincadas no Bixiga, as minhas foram arrancadas da Mooca, onde morei até os 18 anos, quando saí do lar paterno para me aventurar pelos caminhos tortuosos da luta armada.
Minha família continuou por lá, de forma que eu nunca perdi contato com o bairro que se formou praticamente em torno do cotonifício Crespi, um dos marcos da industrialização de São Paulo, fundado em 1897.
Foi o palco onde se iniciou e do qual se irradiou a primeira greve geral brasileira, a de 1917, cuja magnitude foi durante longo tempo minimizada pela historiografia comunista, por ter sido organizada por anarquistas.
…mas suas instalações permanecem preservadas.

Ao redor do cotonifício foram surgindo fabriquetas, pequeno comércio, residências. Nos meus verdes anos, ainda era um bairro de trabalhadores e de baixa classe média, muitos estrangeiros (italianos, portugueses, espanhóis, alemães e até húngaros, armênios e lituanos), com seus vários conjuntos habitacionais implantados pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, suas vilas em que as famílias sentavam-se à noite na porta de casa para papear com os vizinhos, suas ruas que fazíamos de campos de futebol (e os poucos carros passavam lentamente, nos respeitando), com um favelão incrustado bem no seu meio, num enorme terreno baldio existente entre as ruas Padre Raposo e do Oratório.

Hoje foi tomada por uma classe média endinheirada, que mora lá e trabalha alhures. Quase já não tem fábricas, nem vilas. A avenida Paes de Barros, onde cheguei a morar nos fundos de uma casa maior, agora está quase toda preenchida por bancos faraônicos e mansões idem.
Foi no Crespi que começou a grande greve de 1917

O colégio São Judas Tadeu, no qual estudavam os rebentos de famílias remediadas que eram burrinhos ou preguiçosos demais para se darem bem nas exigentes escolas públicas, virou um império educacional. E o hospital da Sociedade dos Chauffeurs, o São Cristovão, um império da medicina mercantilizada. O Cema, mais recente, vai na mesma direção.

Quando, em tempos recentes, visitava minha mãe nas tardes de domingo, não havia viva alma à vista; parecia cidade fantasma. Que saudades do burburinho e efervescência de outrora, quando às vezes ia esperar meu pai à saída do Crespi e eram milhares os que vinham ao lado dele! Que saudades de pulgueiros como o Aliança, o Patriarca, o Imperial, o Icaraí, o Moderno e o Safira, românticos cinemas de rua que, bem disse o corvo, “nunca mais”…
O mártir ignorado pela Mooca

O bairro que apagou totalmente de sua memória a fundamental greve de 1917 é também o bairro que faz questão de esquecer os quatro jovens que, em 1968, paramos o Colégio MMDC, obrigando a diretora a antecipar as férias de meio de ano para proceder ao previsível expurgo. Três logo estaríamos pegando em armas contra a ditadura.

Muito tentei e não consegui que a Mooca reverenciasse o herói que produziu, provavelmente o único de sua história: meu amigo de infância, colega de escola desde o Grupo Pandiá Calogeras, companheiro de movimento estudantil e de militância revolucionária Eremias Delizoicov, executado em outubro de 1969, aos 18 anos, com 35 disparos que o desfiguraram por completo, desferidos desnecessaria e covardemente pelos carrascos da PE da Vila Militar (RJ).

A última escola que cursou na sua curta existência, paradoxalmente, leva até hoje o nome dos estudantes assassinados pela ditadura getulista, ao invés de homenagear um estudante que saiu de seus bancos para ingressar na história dos oprimidos, como um de seus mártires.

A Mooca proletária e calorosa que eu amei não existe mais.

O BLOGUE ORGULHOSAMENTE APRESENTA UM FILME SOBRE A COLÔNIA CECÍLIA

O filme La Cecilia (d. Jean-Louis Comolli, 1975) resgata um episódio histórico pouco conhecido entre nós, embora aqui transcorrido: a implantação de uma colônia rural no Paraná, por parte de anarquistas italianos.
O experimento durou cerca de quatro anos, entre 1890 e 1893. Houve muito entusiasmo no início, mas depois foram aflorando os problemas que acabariam levando à extinção da colônia. Eis alguns deles:

  • a contribuição desigual de citadinos e camponeses, pois a produtividade dos primeiros era inferior. Deveriam receber a mesma fração dos frutos do trabalho, conforme os ideais igualitários? Isto não significaria uma espécie de proletarização dos que produziam mais por estarem acostumados a lidar com a terra? De outra parte, se os lavradores fossem melhor aquinhoados do que os outros, não estaria sendo reproduzida a escala de valores da sociedade burguesa? Inexistia uma solução que contentasse a todos.
  • a dificuldade de lidarem, no dia a dia, com o conceito do amor livre, uma novidade que incomodava principalmente as colonas de origem camponesa;
  • a absoluta falta de seriedade do Estado brasileiro, que já era patético décadas antes de De Gaulle o haver constatado. O imperador Pedro II, atendendo a pedido do músico Carlos Gomes, doou as terras para a instalação da Cecília, mas, proclamada a República, o seu ato foi sumariamente revogado e os colonos tiveram de pagar pelas terras com parte de sua colheita e trabalhando sem remuneração em obras do governo;
  • a hostilidade dos moradores da região (por sentirem-se prejudicados pela concorrência) e de uma vizinha comunidade polonesa, católica e conservadora;
  • as fases de escassez e de fome, com a consequente ocorrência de doenças decorrentes da desnutrição (problemas passageiros, que, contudo, reforçaram a tendência ao egoísmo por parte dos menos convictos dos ideais anarquistas, gerando nocivas divisões);
  • a tentativa do governo de recrutar os colonos (italianos!!!) para combaterem a Revolução Federalista, o que, inclusive, contrariava seus ideais, pois simpatizavam com os revoltosos.
A Cecília chegou a ter 250 moradores, houve defecções em massa, a chegada de novas levas de pessoas atraídas pela divulgação nos círculos libertários europeus, etc. Alguns desistentes migraram para Curitiba, onde fundaram a Sociedade Giuseppe Garibaldi.

É o que o filme mostra, de forma dramatizada e com evidente simpatia pela causa.

Vale destacar que o elenco, cuja única cara familiar ao público brasileiro é a do ótimo Vittorio Mezzogiorno (No coração da montanha, O processo do desejo, Três irmãos), deu perfeita conta do recado.

Particularmente, eu preferiria uma abordagem menos convencional -como, p. ex., a que o cineasta suíço Alain Tanner deu aos ideais de 1968 no seu extraordinário Jonas, que terá 25 anos no ano 2000

Mas, sendo tão raras as produções que enfocam episódios históricos ligados ao anarquismo, temos mais é de difundi-las e recomendar a sua discussão.
Chega a ser chocante que, em meio a tanta tralha produzida no Brasil, ninguém haja realizado um filme sobre a Colonia Cecília. Nem sobre a importantíssima greve geral de 1917, a primeira com maior abrangência em nosso País, tendo sido dramática, sangrenta, longa e… vitoriosa!    
A tutela do sectário PCB sobre a historiografia de esquerda implicou a minimização tanto da Colonia Cecília quanto da greve de 1917, durante décadas. Quando as bandeiras negras anarquistas foram erguidas nas barricadas parisienses em 1968, o interesse dos historiadores por ambas foi reavivado, daí resultando livros e estudos acadêmicos que dimensionaram melhor sua relevância.
Nosso cinema, contudo, continua desperdiçando estes dois grandes temas. Que cada um teça suas conjeturas sobre os motivos de tão injustificável omissão.