Líbia

FIM DO PODER, FIM DO CAPITALISMO OU FIM DO MUNDO?

O fim do poder, do escritor e analista de assuntos econômicos e políticos Moisés Naím, é um artigo inspirado: aborda tendências que muitos já havíamos percebido, sem relacioná-las umas às outras. Paradoxalmente, às vezes é difícil enxergarmos o óbvio.

Vale a pena reproduzir, na íntegra, o texto do venezuelano Naím, que serve como ponto de partida para depois eu ampliar um pouco o foco:

O que têm em comum o aquecimento global, a crise na zona do euro e os massacres na Síria? O fato de ninguém ter o poder de detê-los. Cada uma dessas situações vem se deteriorando em plena vista do mundo. As três implicam graves perigos e o sofrimento de milhões de pessoas. Há ideias do que fazer em relação às três. Mas não acontece nada.

Há reuniões de ministros, cúpulas de chefes de Estado, exortações de líderes sociais, religiosos e acadêmicos. Nada. Diariamente, somos informados de que cada uma dessas crises segue adiante na corrida desembestada rumo ao despenhadeiro. E…? Nada. Não ocorre nada.

É como assistir a um filme em câmera lenta em que um ônibus cheio de passageiros ruma ao precipício, enquanto o motorista não pisa no freio nem muda de direção. O problema é que todos estamos nesse ônibus. No mundo atual, o que acontece em outro lugar, por distante que pareça ser, acaba nos afetando.

Mas minha metáfora é imperfeita. Supõe que o freio e o volante funcionem e que exista um motorista com o poder de frear ou mudar de rumo. Porém não é o que ocorre.

No caso dessas três crises -e de muitas outras-, não há um motorista único, e sim vários. E cada vez há mais motoristas, ou candidatos a motoristas, que, embora não tenham o poder de decidir a direção e a velocidade do ônibus, têm, sim, o poder de impedir que sejam tomadas decisões das quais discordam.

“É impossível ignorar os efeitos do clima sobre
todos nós e sobre as gerações que vão nos seguir”

 Rússia e China não podem solucionar a crise na Síria. Mas podem vetar as tentativas de outros países de deter as matanças. Os líderes de Itália, Espanha ou Grécia precisam da ajuda de outros países e de entidades como o Banco Central Europeu ou o FMI para enfrentar sua crise. Contudo, embora nem Angela Merkel nem os órgãos internacionais tenham o poder de solucionar a crise, eles podem bloquear o jogo.

Com o aquecimento global é a mesma coisa. As evidências científicas avassaladoras confirmam que a atividade humana está aquecendo o planeta, o que gera variações climáticas traumáticas. Se as emissões de certos gases não diminuírem, as consequências para a humanidade serão desastrosas.

E, se para alguns é fácil ignorar a tragédia síria, por estar muito distante, ou a europeia, por lhes ser alheia, é impossível ignorar os efeitos do clima sobre todos nós e sobre as gerações que vão nos seguir.

Essas três crises são uma manifestação de uma tendência que as ultrapassa e que molda muitas outras esferas: o fim do poder. Isso não significa que o poder vá desaparecer ou que já não haja atores com imensa capacidade de impor sua vontade a outros. Significa que o poder vem ficando cada vez mais difícil de exercer e mais fácil de perder. E que quem tem poder hoje está mais limitado em sua aplicação do que eram seus predecessores.

O presidente dos EUA (ou da China), o papa, o chefe do Pentágono ou os responsáveis por Banco Mundial, Goldman Sachs, ‘The New York Times’ ou qualquer partido político hoje têm menos poder do que aqueles que os precederam.

O fim do poder é uma das principais tendências que vão definir o nosso tempo.

A SOLUÇÃO REAL PARA A CRISE
ECONÔMICA É O FIM DO CAPITALISMO

Apesar de terem como ponto comum a chocante omissão dos que deveriam liderar a humanidade face a elas, tais crises guardam também diferenças significativas entre si.

O colapso da economia capitalista é inevitável e sua agonia já se prolonga muito mais do que deveria. Trata-se de uma óbvia consequência da contradição entre a produção coletiva dos bens e a apropriação individual de parte significativa dos frutos desse trabalho coletivo, gerando permanente  descasamento  entre produção e consumo.

Como uns não recebem um quinhão proporcional ao que produziram e outros não têm nem o que fazer com a imensidão de quinhões alheios que usurparam, geram-se distorções em escala geométrica, desembocando nas crises cíclicas do capitalismo flagradas no tempo de Marx.

O capitalismo conseguiu, principalmente graças aos mecanismos de crédito que vão esticando a corda do elástico, impedir que tais crises ocorram periodicamente (como outrora pipocavam mais ou menos de dez em dez anos).

Mas, a artificialidade do edifício erigido é tal que o acerto de contas –todo mundo, governos, empresas e cidadãos, gasta mais do que possui e vai empurrando com a barriga dividas que não teria como saldar–, adiado indefinidamente, acabou emperrando a economia mundial como um todo.

Não há mais como escapar. Marchamos para uma depressão pior ainda que a da década de 1930; e, se tivermos sorte, para uma revolução que conduza a humanidade para um estágio superior de civilização. Se tivermos azar, para o caos e a barbárie.

Engels alertou que é esta a consequência de se represar as revoluções necessárias e prementes; segundo ele, ao impedir que o levante dos gladiadores de Spartacus desse fim à escravidão, liberando as forças produtivas do Império Romano, este se condenou ao desaparecimento, ensejando um retrocesso tão acentuado que a civilização levou um milênio para alcançar de novo o estágio de desenvolvimento já atingido por Roma.

JÁ PASSOU DA HORA DE DETERMOS
A HECATOMBE HUMANITÁRIA NA SÍRIA

Diferentemente, a crise síria poderia ser resolvida. Ocorre que os desatinos da intervenção da Otan na Líbia estão sendo, até agora, obstáculo a uma solução civilizada.

Ditadores são difíceis de remover, pois usam parte do que saquearam dos seus povos para armarem-se até os dentes e não hesitam em recorrer às mais bestiais torturas e as matanças mais indicriminadas para perpetuarem-se no poder.

Quando, finalmente, os cidadãos pegam em armas contra as tiranias, há, sim, motivo para (e necessidade de) a comunidade internacional intervir, para evitar que sejam massacrados. Até aí a ONU estava certa no caso da Líbia –por mais que uma esquerda que ainda não saiu das trevas do stalinismo berre e esperneie, continuarei defendendo esta postura civilizada.

Mas, num ponto qualquer do caminho, a Otan extrapolou a missão que a ONU lhe conferiu. Ao invés de apenas defender a população civil e evitar massacres, passou a conduzir ela própria as operações militares para a derrubada de Gaddafi. Cabia aos líbios livrarem-se por si sós do odioso tirano, não à Otan fazer o serviço no lugar deles.

Tal erro acabou tendo trágicas consequências, não só na Líbia, como as que se verificam hoje na Síria, onde há muito tempo deveria ter havido uma intervenção da ONU, nos mesmíssimos moldes daquela que ela autorizou contra Gaddafi, apenas zelando para que desta vez fosse mantida sob estrito controle.

O preço da omissão é a destruição do país e os sofrimentos terríveis que estão sendo impostos a centenas de milhares de sírios. Nenhuma racionália geopolítica justifica tal hecatombe humanitária. Quem compactua com tais horrores é tudo, menos um seguidor de Marx ou Proudhon. Está mais para herdeiro de Pol Pot e Vlad Dracul.

A CONTAGEM REGRESSIVA PARA O
FIM DA HUMANIDADE ESTÁ EM CURSO

Finalmente, a destruição das próprias bases da sobrevivência da espécie humana por parte do capitalismo –e aqui nos referimos não só ao aquecimento global, mas também ao malbaratamento de recursos finitos que nos são essenciais, como a água– não cessará enquanto a organização social e econômica priorizar interesses particulares e não a promoção do bem comum.

Ninguém precisa ser cientista para perceber que o quadro se agrava insensivelmente, que as alterações climáticas causam cada vez mais estragos e (vide Fukushima) que corremos enorme risco de as inundações e terremotos servirem como estopins de acidentes nucleares.

Mas, há cientistas pagos pelos  agentes do juízo final  para proclamarem exatamente o contrário, minimizando o perigo. Há nações que proclamam a prevalência do seu direito ao crescimento econômico sobre os interesses maiores da humanidade, inclusive a salvação da espécie humana.

Então, repetindo a conclusão sobre a agonia da economia capitalista:

  • se tivermos sorte, quando a escalada de catástrofes intensificar-se a ponto de não restarem mais dúvidas de que marchamos para o fim, os homens se unirão numa luta coletiva pela sobrevivência e depois cuidarão de reconstruir a sociedade em bases solidárias, pois vão saber muito bem aonde o  cada um por si  desemboca;
  • se tivermos azar, ou a espécie humana será extinta, ou o retrocesso vai ser maior ainda que o ocorrido após a queda do Império Romano.

É simples assim. É terrível assim.

ERA "ISTO" QUE ALGUNS ESQUERDISTAS DEFENDIAM?!

Sempre tratei Muammar Gaddafi como um mero milico nacionalista, fruto tardio do nasserismo, que chegou ao poder por meio de uma quartelada e estruturou uma tirania familiar.
Houve companheiros que fecharam os olhos às gritantes evidências de que seu antiimperalismo era apenas retórico, de fachada, enquanto saqueava a Líbia. A podridão do clã Gaddafi, entretanto, continua vindo à tona.
Afora tudo que já foi revelado sobre o fausto majestático em que vivia no seu país, chega agora a notícia de que, atendendo ao Tribunal Penal Internacional, a Justiça italiana sequestrou os bens que Gaddafi & comparsas (seu filho Saif al Islam e o ex-chefe do serviço secreto Abdullah al Senussi) possuíam na Itália, cujo valor supera 1,1 BILHÃO de euros!
Confiando nos préstimos do seu cupincha Berlusconi, o ditador das 1.001 noites lá mantinha um diversificado patrimônio pessoal, que incluía uma motocicleta Harley Davidson e um bosque de 150 hectares na ilha siciliana de Panteleria.
Só que era como José Sarney, não queria largar o osso. 
Então, embora já houvesse preparado seu exílio dourado na Sicília (terá sido Berlusconi quem lhe sugeriu o berço da Máfia?), demorou demais para buscar o refúgio e acabou tendo sua fuga interceptada. 
Alá existe.

CAOS NA LÍBIA

Estão eufóricos os defensores de ditaduras como supostos males menores: a Líbia não consegue voltar à civilização, o governo central está sem controle dos grupos autônomos que se uniram para derrubar o tirano Mummar Gaddafi e estes, agindo como lhes dá na telha, cometem brutais retaliações contra cidadãos identificados com o regime deposto.

A última vítima foi Hala Misrati, apresentadora de TV –para piorar, morta na prisão, quando cabia às autoridades estarem zelando por sua vida e por sua integridade física e mental.
Repetiu-se o drama do próprio ditador, que jamais deveria ter sido emasculado e executado daquela maneira, mesmo pesando sobre ele a responsabilidade por haverem recebido tratamento semelhante tantos e tantos cidadãos líbios, inclusive meninas e meninos. Mas, o  olho por olho, dente por dente  é a justiça dos pastores de cabras dos tempos bíblicos, não tem mais lugar no século 21.
Denúncias de gravíssimas violações dos direitos humanos vêm sendo feitas pela ONU, a Anistia Internacional e a ONG Médicos Sem Fronteira.

Mantenho o que disse durante a crise: 

  • havia mesmo que se impedir o massacre dos rebeldes pelas forças governamentais, mas a Otan extrapolou em muito o mandato que lhe foi conferido pela ONU, passando a atuar como força invasora e não como missão de paz;
  • com Gaddafi, havia a certeza de que os cidadãos líbios continuariam sendo torturados e executados para que fosse mantida a tirania familiar na qual desembocara sua quartelada de milicos nacionalistas (1);
  • com os rebeldes no poder, o leque de possibilidades se abriria e, se prevalecessem as piores hipóteses, seria o caso de denunciarmos o novo governo tanto quanto denunciávamos o antigo;
É o que estou fazendo agora (2), a cobrar da ONU e da Otan providências para corrigirem o mal causado por sua intervenção desvirtuada e desatinada.
É de supor-se que, se a luta para a derrubada de Gaddafi fosse conduzida pelos próprios rebeldes, eles acabariam, no transcurso de uma campanha bem mais longa, sendo obrigados a criar um comando único, embrião do futuro governo.

Tendo a Otan assumido a dianteira e liderado as operações militares –precipitando, portanto, os acontecimentos–, chegaram ao poder ainda como um amontoado de grupelhos autônomos de guerrilha, divididos por querelas tribais, religiosas e políticas.

Derrubado Gaddafi, a ONU e a Otan omitiram-se de sua evidente responsabilidade na reconstrução do país –começando por darem ao novo governo os meios para impor sua autoridade e, tarefa imediata, desarmar e desmobilizar os grupos guerrilheiros.
Era a receita óbvia do caos; e o caos aconteceu.

1 Para verdadeiros revolucionários, tanto os regimes de força instaurados pelos golpes de estado de cunho nasserista quanto as tiranias familiares  das mil e uma noites  nada, absolutamente nada têm a ver com a construção de sociedades igualitárias e livres, nas quais os explorados assumissem o papel de sujeitos da História, ao invés de continuarem instrumentalizados e intimidados, apenas trocando de senhores.
2 Durante longo tempo, Trotsky considerou que o desvirtuamento da Revolução Soviética não seria definitivo enquanto  a economia se mantivesse coletivizada. Certa vez lhe perguntaram o que faria se, pelo contrário, ficasse confirmado que a  nomenklatura  se tornara uma classe dominante, só que de novo tipo. Face à possibilidade de a obra de sua vida adulta inteira ter ruído, ele simplesmente respondeu: “Então, passarei imediatamente a organizar a luta dos servos do coletivismo burocrático”. Da mesma forma, será patético nos lamentarmos de que a derrubada de Gaddafi (como a daquele outro tirano, o czar) não tenha levado aonde se queria. Temos é de voltar à luta, tantas vezes quantas forem necessárias para a verdadeira emancipação do povo.

O AÇOUGUEIRO DE DAMASCO ESTÁ NA MARCA DO PÊNALTI

Despachos das agências internacionais dão conta de que os chanceleres da Liga Árabe exigiram neste domingo (22) a renúncia do sanguinário ditador da Síria, Bashar al-Assad: no prazo de duas semanas, ele deverá transferir seus poderes ao vice-presidente do país, Farouk al Charaa, para viabilizar a formação de um governo de união nacional e a realização de eleição presidencial em março ou abril.
É a alternativa civilizada para dar-se um fim à matança sem intervenção das potências ocidentais.
Para imensa vergonha dos  esquerdistas de neandertal  brasileiros, eles jamais manifestaram a mais remota preocupação  com a cessação do genocídio, limitando-se a apoiar incondicionalmente o tirano bestial.
Como se vê agora, expelir um déspota não implica necessariamente a repetição dos excessos cometidos pela Otan na Líbia. Nem aqueles excessos justificam que doravante compactuemos com todos os carniceiros que massacrarem seus povos.

O SAGRADO DIREITO AO CANIBALISMO

Aqui atrasamos em uma hora os relógios nos meses de verão.

Na Arábia Saudita os relógios estão permanentemente atrasados em… um milênio!
Este bizarro despacho é da Agência France Presse:

Uma mulher, condenada à morte por bruxaria, foi decapitada nesta segunda-feira, anunciou o ministério saudita do Interior…

Amina bent Abdelhalim Nassar foi executada na província de Jawf (norte).

A prática de bruxaria é estritamente proibida pelo Islã.

Esta decapitação eleva a 73 o número de execuções na Arábia Saudita desde o mês de janeiro.

O estupro, o homicídio, a apostasia, o roubo a mão armada e o tráfico de drogas são passíveis de pena capital na Arábia Saudita, que aplica estritamente a sharia (lei islâmica).

Ou seja, ao lado dos piores crimes, os obscurantistas das Arábias colocam a apostasia (renúncia de uma religião ou crença, abandono da fé, renegação).
Se um saudita praguejar à maneira dos espanhóis anticlericais –os quais, usando linguagem mais crua, diziam (dizem?) defecar no Todo Poderoso–, isto lhe custará a vida.
A existência desses bolsões intocados pelo iluminismo, onde até hoje perduram as trevas medievais, colocam um dilema para as nações e povos que seguiram galgando os degraus da civilização –da qual o respeito aos direitos individuais (liberdade religiosa inclusa) é um dos principais pilares, uma condição  sine qua non.
Há os que pregam a conivência com a barbárie para que seja preservada a  integridade sócio-cultural  dos povos primitivos –o que, em última análise, implicaria permitir-se aos indigenas continuarem praticando o canibalismo e a algum Vlad Dracul redivivo, empalar à vontade os inimigos derrotados (o cambojano Pol Pot chegou perto…).
E há os que, pelo contrário, consideram ser um dever dos civilizados lutarem contra a barbárie.
Que, portanto, devem ser multiplicadas as pressões para forçar os bárbaros a abandonarem as práticas intolerantes e desumanas.
E que não deve haver omissão quando governos impopulares exterminam seus cidadãos para perpetuarem-se no poder por meio da intimidação e do terror, como faz Bashar al-Assad, o  açougueiro de Damasco.

Infelizmente, as nações que deveriam defender a civilização têm-se apresentado divididas por seus interesses mesquinhos em tais ocasiões.
Algumas se omitem, o que impede o problema de ser resolvido por  simples isolamento diplomático e embargo econômico –os quais, se fossem cumpridos à risca (governos pestilentos devem ser submetidos à mais rigorosa quarentena…), certamente teriam prostrado a Líbia e, agora, a Síria, sem necessidade do recurso às armas.
Algumas querem ir além da mera defesa de cidadãos massacrados, incorrendo em excessos como os cometidos na campanha contra Muammar Gaddafi.
O mandato conferido pela ONU às tropas da Otan era apenas para impedirem um genocídio em Benghazi, a cidade rebelde.

Quando extrapolaram sua missão, tornando-se as principais responsáveis pela reviravolta militar e consequente derrubada do tirano, deram péssima imagem às chamadas  forças de paz, reforçando a posição dos que defendem o  sagrado direito ao canibalismo.

Ruim de um jeito, ruim do outro. A racionalidade parece banida do planeta, tornando atual a soturna frase com que Edgar Allan Pöe iniciou seu conto “Metzengerstein”:

O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Por que então datar esta história que vou contar?

O FIM DE GADDAFI, CONTRADIÇÕES E MANIQUEÍSMOS

Parte da esquerda via Muammar Gaddafi como uma pedra no sapato do imperialismo (embora, passada sua fase carbonária, já tivesse se acertado com as grandes nações e corporações capitalistas) e como o responsável por algumas melhoras nas condições de vida do povo líbio.

Outra, como pouco mais do que um tirano megalomaníaco e sanguinário.
Esta última, na qual me incluo, tem sensibilidade mais aguçada em relação a tudo que se pareça com as ditaduras que enfrentamos por aqui.
Além de não esquecer as lições do pesadelo stalinista: o dano imenso à causa revolucionária produzido por regimes ditos de esquerda que, em nome de Marx, arquivaram a promessa marxista de instauração do “reino da liberdade, para além da necessidade”, acreditando que bastasse impor a justiça social a ferro e fogo, de cima para baixo e sobre montanhas de cadáveres.
Marx incumbiu os revolucionários de criarem condições para que o proletariado assumisse seu papel de  sujeito da História.
Era-lhe estranha, para não dizer inaceitável, a noção de que chegassem ao poder de qualquer jeito (inclusive as quarteladas de militares nacionalistas) e então, segurando firmemente suas rédeas, oferecessem alguns benefícios ao povo, reduzido à condição de objeto da História.
Se não são os explorados que conquistam o poder, também não vão ser eles que o acabarão exercendo. E despotismos, mesmo que inicialmente pareçam ser benígnos, acabam degenerando em intimidações bestiais e privilégios grupais ou familiares.

É exatamente o quadro que Hélio Schwartsman nos apresenta em sua inspirada coluna desta 6ª feira, Combinação mortal:

“…Não há dúvida de que Gaddafi foi um tirano particularmente selvagem. A lista de malfeitos inclui assassinato, estupro, terrorismo e roubo.
Estima-se que ele e sua família tenham pilhado bilhões.
Irascível, eliminava opositores até por críticas leves ao regime. Conta-se que, numa ocasião, deixou os corpos de adversários que enforcara apodrecendo na praça central de Trípoli. Para garantir que todos captassem a mensagem, desviou o trânsito, forçando motoristas a passar pelo local.
O mundo, porém, não é um lugar tão simples como gostaríamos. O ditador também exibe algumas realizações civilizatórias. Respaldado pelo petróleo, investiu em saúde e educação e até distribuiu alguma renda. A expectativa de vida saltou de 51 anos em 1969 para mais de 74. A Líbia tem os melhores índices de educação da África. O ditador também fez avançar os direitos das mulheres. O maniqueísmo funciona melhor em nossas mentes que na realidade…”
…para que o ‘guia da revolução’ se tornasse o assassino em massa que virou, foi preciso acrescentar o idealismo, isto é, a convicção de servir a um Deus e a uma ideologia infalíveis. Foi uma combinação mortal”.
Como vimos do nosso lado do mundo, ditaduras, mesmo quando tenham avanços econômicos para exibir, acabam saturando. Ninguém aguenta viver indefinidamente debaixo das botas.
E é bom que tal aconteça, aliás. Ai de nós se os seres humanos se conformassem com a vida de gado em fazenda-modelo (“povo marcado, povo feliz”, no dizer do Zé Ramalho)! Nesta eventualidade, bastaria os donos do mundo serem um pouquinho menos gananciosos, aumentando a quota de migalhas do banquete distribuídas ao povão, que sua dominação seria eterna.
Então, Gaddafi caiu porque a maioria do povo líbio ou estava contra ele, ou indiferente à sua sina. O engajamento das nações ocidentais ao lado dos rebeldes não foi o fiel da balança, pois o apoio das massas reequilibraria as forças, se Gaddafi o tivesse.

Inimigo pior, bem pior, o glorioso povo espanhol encarou em 1936, detendo a marcha triunfal dos generais fascistas para o poder e obrigando-os a travarem uma terrível guerra civil.

Já a ditadura líbia caiu de podre, em curto espaço de tempo e sem nada que caracterizasse uma legítima resistência popular ao avanço dos revoltosos.
Fica para a esquerda a lição de que precisa voltar a levar em conta as contradições, como marxistas devem fazer, deixando de lado o maniqueísmo simplista de não enxergar defeitos em quem tem algumas virtudes que lhe agradam.
Militares nacionalistas, contrários ao colonialismo e ao imperialismo, não equivalem a revolucionários. Ditaduras que ofereçam alguns benefícios ao povo não equivalem ao mundo novo pelo qual socialistas e anarquistas lutamos.
Portanto, não nos cabe, jamais, os apoiarmos incondicionalmente, nem nos identificarmos com eles sem ressalvas.
Caso contrário, o homem comum deduzirá que nosso objetivo final é a implantação de regimes sanguinolentos como o de Gaddafi — o que, aliás, a propaganda da direita não cansa de trombetear.

GADDAFI: ATÉ O MAIS AMARGO FIM

Anuncia-se que o deposto ditador líbio Muammar Gaddafi terá sido capturado ou morto pelas forças do novo governo.

Como Adolf Hitler, ele atraiu a desgraça para sua gente, ao teimar em resistir quando já não havia a mais remota possibilidade de evitar a derrocada.
Desde a queda de Trípoli, quantas vidas se perderam, quantos seres humanos ficaram estropiados por nada, absolutamente por nada?!
O nefando führer teve, pelo menos, a dignidade de selar ele próprio seu destino e o de seus restos mortais, negando aos inimigos um troféu para exibirem.
Gaddafi, se a notícia for confirmada, nem isto.

UMA OPERAÇÃO CONDOR DAS ARÁBIAS

Que Muammar Gaddafi, fiel ao figurino dos ditadores, mandava torturarem opositores a torto e a direito, qualquer pessoa medianamente informada sabe. O déspota esclarecido dos relatos de certa esquerda é conto de carochinha comparável a O Patinho Feio.

E havia outra afinidade com as ditaduras latino-americanas: os adversários do regime eram sequestrados em outros países, por outros governos, e entregues numa bandeja aos Brilhantes Ustras líbios. Ou seja, montaram também lá uma espécie de Operação Condor.
E quem fazia o serviço imundo?
Os EUA e a Grã Bretanha. Nem mais, nem menos.
No quartel-general do ex-ministro do Exterior e comandante do serviço de inteligência de Gaddafi, o Human Rights Watch encontrou provas do envolvimento da CIA e o MI6 britânico na captura e extradição ilegal de líbios contrários a Gaddafi. Devolvidos ao seu país, foram, claro, torturados e atirados nas masmorras.
Quem não usa antolhos percebe, cada vez mais, que as grandes nações ocidentais se davam muito bem com Gaddafi e só transferiram seu apoio aos rebeldes por terem percebido que o regime caía de podre.
Sabendo que — mesmo que sobrevivesse à revolta de 2011 — a derrubada do tirano execrado por seu povo seria mera questão de tempo, apostaram nos poderosos futuros: compondo-se com os rebeldes, devem ter garantido a continuidade, por mais algumas décadas, dos bons negócios que realizavam com Gaddafi.
Afinal, como dizem os gangstêres dos filmes de Hollywood,  não é pessoal, são só negócios

Resta saber se o papel infame desempenhado pelo Ocidente no passado será esquecido com tanta facilidade por revoltosos como Abdul Hakim Belhaj.

Comandante das forças rebeldes que derrotaram Gaddafi em Trípoli, ele estava refugiado na Malásia em 2004, quando foi detido durante visita à Tailândia e entregue ilegalmente para a CIA, que o repassou aos torturadores líbios. Tudo isto com a conivência do Reino Unido.
Os canalhas infames de ontem são os aliados de hoje. Belhaj sabe muito bem o que eles realmente valem: nada.

GADDAFI, SOBRE A LÍBIA: "DEIXEM QUEIMAR!"

Quando eu aludo à distância estratosférica que separa os revolucionários marxistas ou anarquistas dos caudilhos de origem militar, muitos jovens não entendem. Faltam-lhes a vivência e a familiaridade com os nossos clássicos.
A tradição da esquerda que remonta a Marx ou Proudhon é considerarmos os explorados como o sujeito da revolução; e o partido, no máximo como a vanguarda dos explorados.
A doença mortal da esquerda no século passado foi o substituísmo, assim descrito por Trotsky: primeiramente, o partido substitui o proletariado; depois, o comitê central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o comitê central.
Caudilhos saídos da caserna, como Gaddafi, encurtam tal trajetória. Na sua visão o povo é, desde a etapa conspiratória, tão somente objeto, nunca sujeito. E partido só existe um, o do “sim, senhor!”. Quem realmente detém o poder é o déspota, secundado pelos membros do seu clã.
Outra diferença gritante é quanto à identificação com o povo sofrido. Marxistas e anarquistas a temos. É o ponto de partida da nossa trajetória.
Caudilhos, não. Verdadeiramente, nenhuma! Para eles, os humilhados e ofendidos não contam. São descartáveis.
É o que se constata nesta frase de Gaddafi, que foi derrubado, está vencido mas insiste em atrair a desgraça para sua gente. Entrincheirou-se na cidade natal, o que só fará com que ela seja destruída e um sem-número de coitadezas pegue as sobras.
Declaração gravada de Gaddafi: “Se a Líbia for tomada pelas chamas, quem será capaz de governar? Deixem queimar!” (*).
Revolucionários lutamos de peito aberto, como combatentes, preferindo o sacrifício final a sermos responsáveis por massacres de civis.
Caudilhos se ocultam onde existem mulheres, velhos e crianças, na esperança de que o inimigo tenha a clemência neles próprios inexistente.
Frase tão repulsiva jamais sairia da boca de um Guevara, Lamarca ou Marighella.
Dita por Gaddafi, não causa surpresa nem espanto.

* “Que haja uma longa luta. Vamos lutar de cidade em cidade, montanha em montanha. Se a Líbia for tomada pelas chamas, quem será capaz de governar? Deixem queimar! Os inimigos não querem controlar a Líbia. Não podem governar enquanto estivermos armados. E ainda estamos armados. Não vamos desistir. Não somos mulheres nos rendendo a nossos maridos. Vamos continuar a lutar”.

O AMARGOR E A ESPERANÇA

Jornal publica, com o apoio de um vídeo, que policiais deixaram bandidos agonizantes sem socorro, mandando-os estrebucharem de uma vez.

Os leitores, em expressiva maioria, aplaudem os policiais e criticam o jornal (extremamente criticável por outros motivos, mas certo desta vez).

Militar toma o poder num país árabe e impõe uma tirania pessoal, com tinturas anticolonialistas para dourarem a pílula. No entanto, o arbítrio, as torturas e assassinatos de opositores eram os mesmíssimos dos regimes de gorilas latino-americanos como Pinochet.

Muitos esquerdistas brasileiros tomam as dores do tirano, lamentando sua derrubada porque os revoltosos têm apoios discutíveis… embora seja indiscutível que o povo queria mesmo é ver-se livre do clã que o oprimia há 42 anos, enquanto seus membros ostentavam repulsivos privilégios de nababos.

No fundo, são dois exemplos de um mesmo comportamento: pessoas que abdicam de serem boas, justas, nobres e dignas. Preferem ser amargas, más, rancorosas e vingativas. Optam por jogar a civilização no lixo, apoiando a imposição da força bruta e abrindo as portas para a barbárie.

Mas, nem a criminalidade será extinta com o extermínio dos bandidos (outros tomarão seu lugar, indefinidamente), nem a revolução mundial avançará um milímetro com a esquerda apoiando tiranos execráveis. Quem é guiado pelo amargor, apenas se coloca no mesmo plano do mal que combate, abdicando da superioridade moral e desqualificando-se para liderar o povo na busca de soluções reais.

No caso dos esquerdistas desnorteados, eles esquecem que os podres poderes se sustentam exatamente na descrença dos homens quanto às possibilidades de mudar o mundo.

Céticos, eles se tornam impotentes. Cabe a nós devolvermo-lhes as esperanças.

Nunca teremos recursos materiais equiparáveis aos do capitalismo. Nosso verdadeiro trunfo é personificarmos tais esperanças — principalmente a de que a justiça social e a liberdade venham, enfim, a prevalecer.

Ao apoiarmos um Gaddafi, sinalizamos para o homem comum que ele só tem  isso  a esperar de nós. Quem, afora fanáticos, quererá dedicar sua vida à construção… de uma ditadura?!

Então, ou falamos o que faz sentido para os melhores seres humanos (os únicos que conseguiremos trazer para nosso lado no atual estágio da luta) ou continuaremos falando sozinhos, sem força política para sermos verdadeiramente influentes.