Mário Faustino

APOCALÍPSE QUANDO?

Esta é a ameaça…

Depois da consagração com “Disparada” no Festival da Record de 1966, Geraldo Vandré tentou repetir a dose no ano seguinte: na mesma linha do épico do boiadeiro, inscreveu um épico… do chofer de caminhão.

A estrutura era idêntica, havia também uma introdução (“Meu senhor, minha senhora/ vou falar com precisão/ não me negue nesta hora/ seu calor, sua atenção”) bem nas pegadas da anterior (“Prepare o seu coração/ pras coisas que eu vou contar/ Eu venho lá do sertão/ e posso não lhe agradar”), letra longa descrevendo a   jornada do imbecil até o entendimento, etc.

E, como rendera boa divulgação prévia a utilização de uma queixada de burro como instrumento musical, ele levou novamente uma atração bizarra para o palco: uma possante buzina, que soou os acordes iniciais de “De como um homem perdeu seu cavalo e continuou andando” (ou, simplesmente, “Ventania”).
A repetição de fórmula não colou, mas não era uma composição descartável. Gosto até hoje desta estrofe:
Andei pelo mundo afora
querendo tanto encontrar
um lugar pra ser contente
onde eu pudesse ficar.
Mas a vida não mudava
mudando só de lugar
É também meu sentimento em relação à virada da folhinha.
A vida não muda mudando só de ano, embora queiramos sempre acreditar que o seguinte será melhor… apenas porque já não suportávamos mais o outro.
…estes, os principais ameaçados…

Só que há razões bem determinadas para nossos anos serem ruins. Dá para enfeixá-las numa única palavra: capitalismo.

Assim, p. ex., existem duas bombas-relógios em nosso futuro, por  cortesia  dessa entidade que verdadeiramente já morreu, mas deixamos continuar nos desgraçando, ao invés de cravar-lhe a estaca que a reduzirá a pó.
A primeira é a grande depressão que, mais dia, menos dia, desabará sobre nós, como consequência do represamento das crises cíclicas capitalistas –elas antes eram periódicas e relativamente mais brandas, agora o sistema consegue postergá-las, empurrando-as mais e mais para a frente, o que não impedirá o elástico de acabar arrebentando. E aí a crise iniciada com o  crack   de 1929 parecerá, provavelmente, brinquedo de criança.
Será em 2012 o  apocalypse now? Ou continuaremos nessa lenta agonia que já tragou Grécia, Espanha, Itália? As pedras do dominó continuarão tombando uma por vez ou vão cair todas de uma vez?
A outra incognita são as consequências do aquecimento global. Vimos em Fukushima o trailer do que está por vir: a conjugação de sismo e tsunami com a insegurança nuclear quase completou a obra estadunidense de agosto/1945, tornando o Japão uma ilha bem mais nua que a do filme do Kaneto Shindô.
Catástrofes naturais continuarão ocorrendo, mesmo se tomarmos as medidas necessárias para impedir que a indústria automobilística e outros focos de poluição atmosférica extingam a espécie humana. Já não se trata mais de evitá-las, e sim de minorar sua intensidade e  período de duração  (nosso  período de provação).

E nem isto estamos, realmente, fazendo. Parece que as coisas ainda terão de piorar, antes de começarem a melhorar.

…e este, o motivo da ameaça.

É certo que a fúria da natureza vai aumentar neste ano, como veio aumentando nos últimos. Mas, não dá para prevermos se haverá ocorrências de extrema gravidade em 2012 ou vamos ser poupados. Elas estão sendo incubadas e os ovos vão eclodir, cedo ou tarde.

O que fazer?
Iludir-se com a desconversa dos pistoleiros de aluguel acadêmicos e midiáticos do capitalismo?
Deixar-se tomar pelo pessimismo, arrancando os cabelos?
Resignar-se à vontade divina?
Aproveitar ao máximo os últimos dias de Pompéia, e que se dane o mundo?
No fundo é questão de temperamento –além do dever de legarmos vida a quem demos vida.
Mas, como dizem os zen-budistas, o dever só obriga quem acredita que o tem. E o capitalismo insufla ao máximo o egoísmo e a indiferença pela sorte dos outros –quaisquer outros, até filhos e netos, salvo no que tange aos gastos para aplacar a consciência culpada por não lhes dar a atenção que merecem…
Falo por mim, e sei que meus leitores são afins: lutarei com todas as minhas forças, nos anos que me restam, para que minhas filhas e netos não vivam e morram num planeta devastado.
E também porque lutar é sempre minha primeira reação face aos poderosos, suas injustiças sem perdão e seus crimes sem castigo.
Foi o grande motivo de eu ter entrado no caminho das lutas políticas sociais aos 16 anos; continua sendo um forte motivo aos 61.
Somos o que somos, traçando nossos caminhos pelo mundo a partir do que somos –ou seja, de como nos construímos pela vivência pessoal do eterno conflito entre o cosmo sangrento e a alma pura (grande Mário Faustino!).
O calendário nada tem a ver com isto.

30 ANOS SEM GLAUBER ROCHA, GLADIADOR DEFUNTO MAS INTACTO

Hoje (22/08) se completam 30 anos da morte do baiano Glauber Rocha, o maior cineasta brasileiro de todos os tempos.

Tudo nele era trepidante, tempestuoso. Depois de realizar um filme apenas promissor sobre misticismo e consciência social (Barravento, 1962), deu um salto incrível de qualidade em apenas um ano, obtendo consagração instantânea com Deus e o Diabo na Terra do Sol, parábola delirante sobre cangaceiros e fanáticos.
O espanto e a admiração foram tão intensos que poucos críticos perceberam se tratar de um filme um tanto desequilibrado: a primeira parte, em que o casal de camponeses  Manoel  (Geraldo Del Rey) e  Rosa  (Yoná Magalhães) ingressa no rebanho do   Santo Sebastião (ersatz de Antônio Conselheiro) é muito inferior à segunda, a da passagem de ambos pelo cangaço. E não só porque o ótimo Othon Bastos deu um banho de interpretação como  Corisco, enquanto Lídio Santos (Sebastião) era amadoresco e tinha carisma zero.

Aliás, o  Corisco  glauberiano foi o melhor cangaceiro que o cinema brasileiro criou, em mais de uma dezena de filmes. Um personagem contraditório e explosivo, ora se vendo como um instrumento de São Jorge (“o santo do povo”), ora barbarizando o sertão qual endemoniado, para vingar a morte de Lampião.  

Outro grande acerto de Glauber foi o contraponto de  Corisco: o jagunço  Antônio das Mortes  (o papel da vida do grandalhão Maurício do Valle).
Antônio  mata cangaceiros e beatos a soldo do latifúndio, mas acredita estar desimpedindo o caminho para a libertação do povo, pois este deverá travar sua grande cruzada “sem a cegueira de Deus [Sebastião] e do diabo [Corisco]” – motivo pelo qual ele liquida os dois.
É o conceito que encerra o filme: a morte de  Corisco  tira  Manoel  da órbita messiânica do Bem e do Mal. Em fuga, ele corre e o oceano parece vir ao seu encontro, realizando a profecia de  Sebastião: “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. É claro que Glauber tinha em mente os altos mares da revolução.
O que veio, entretanto, foi o golpe militar. E a imensa depressão causada pela derrota foi expressa/purgada na obra-prima seguinte de Glauber, Terra em Transe (1967), sobre o confronto entre o político populista  Felipe Vieira  (José Lewgoy) e o direitista  Porfirio Diaz  (Paulo Autran) num país fictício com todo o jeitão de Brasil, culminando numa quartelada que tem total apoio da empresa estrangeira dominante.
Entre os dois está colocado o poeta  Paulo Martins (Jardel Filho), representando uma intelectualidade oscilante e confusa, mas que, no momento da decisão, lança-se à luta contra o golpismo (o maquiavélico  Diaz,  evidentemente, foi inspirado no  corvo  Carlos Lacerda).
É uma contundente autocrítica da esquerda brasileira transposta para as telas. O que se discute, basicamente, são os erros cometidos pelo Partido Comunista e o apoio oportunista a um político que não era verdadeiramente revolucionário nem estava à altura do momento histórico. Quando  Vieira  evita resistir para que não seja derramado “o sangue das massas”, é João Goulart que está falando pela boca dele.
E, de certa forma, trata-se de um filme premonitório: o poeta não aceita a perspectiva de viver debaixo das botas e provoca a própria morte, em nome do “triunfo da beleza e da justiça”. Foi mais ou menos o que fizemos nos anos seguintes, ao lançarmo-nos numa luta impossível de ser vencida — embora, claro, não nos movesse nenhuma propensão ao suicídio, mas sim a esperança de libertar nosso povo. Tínhamos  fé cega na justeza de nossos ideais, mas a faca amolada, quem a possuía era o inimigo…

O ciclo se fechou com O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968), um filme feito com a consciência de que era iminente o confronto armado entre a esquerda e a ditadura.

Foi uma profissão de fé na revanche histórica dos humilhados e ofendidos.   

Antônio das Mortes  entra em parafuso, repensa o papel que vinha cumprindo e acaba se reposicionando na trincheira correta, ao lado de um professor ligeiramente inspirado no médico Che Guevara (Othon Bastos) e dos fantasmas do cangaço, de Canudos e de Palmares, todos numa santa união contra o coronelismo personificado por Jofre Soares.  Finalmente, São Jorge crava sua lança no dragão.

Fora das telas, entretanto, quem acabou vencendo foi a besta-fera. E Glauber, como o  Paulo Martins  de Terra em Transe, não reencontrou seu caminho, nem inspiração, em meio à pasmaceira e ao medo.
Fez filmes repetitivos e dispensáveis, até chegar ao fundo do poço: o caótico, no mau sentido, A idade da Terra (1980), tão sem rumo no espaço que o Glauber passou quase um ano tentando montá-lo, até que, por imposição da Embrafilme, entregou qualquer coisa para exibição num festival. Comentei, então, que podíamos entrar e sair no trecho que quiséssemos, dava no mesmo…
Chegou até a levar seu estilo nervoso, com câmara na mão, à TV, fazendo intervenções  criativas  num programa dominical do SBT. Só que, estando aquelas  ousadias  meio gastas, ele foi encarado mais como atração bizarra.
No Festival de Brasília de 1978, o curta-metragem estava começando quando alguém começou a gritar no escuro:

 – Aqui é o Glauber Rocha, falando em nome das aberturas democráticas [a “distensão lenta, gradual e progressiva” do ditador Geisel]. Vim para denunciar o maior dedo-duro da História do  Brasil, que é fulano [nominou o então presidente da Fundação Cultural do Distrito Federal].

Os espectadores o calaram com apupos e berros de “respeita o trabalho dos outros!”. Foi embora furibundo.

No dia seguinte, ouvi o acusado. Ele disse que o problema do Glauber era apenas não ter recebido uma subvenção com a qual contava.

Telefonei também ao Glauber, pedindo-lhe uma entrevista. Ele marcou para o começo da tarde, no seu hotel… e decolou para o RJ na hora do almoço.

Mas, todos os que curtimos intensamente o sonho de 1968 ficamos fora do eixo naquela terrível década subsequente – uns mais, outros menos.

Prefiro recordar o Glauber que lavou a minha alma com os três filmes que, até hoje, melhor expressaram o transe brasileiro.

Cai como uma luva, para ele próprio, a estrofe de Mário Faustino que Glauber encaixou em Terra em transe, como um tributo ao seu personagem que também termina como poeta suicida:
Não conseguiu firmar o nobre pacto
entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
da vitória do caos sobre a vontade
augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)