Norman O. Brown

MEU JESUS É O QUE ANDAVA SOBRE AS ÁGUAS

Hoje não tem artigo, crônica ou crítica. Tem música.

E é uma canção belíssima: La Saeta. Fiquei arrepiado ao escutá-la pela primeira vez, na voz do nosso Fagner, em dueto (ouça-o aqui) com o autor Joan Manuel Serrat -outro extraordinário cantor/compositor catalão, a exemplo de Lluís Llach.

Talvez porque, desde meus verdes anos, sempre me incomodasse a opulência do catolicismo oficial — aquele dos altares, das procissões, da Inquisição e das  Redentoras.

Com o tempo aprendi que não era esse o verdadeiro legado de Jesus Cristo, mas sim uma mensagem de esperança para os pobres, os humildes, os fracos, os desprotegidos, os injustiçados e os excluídos da Judeia -como destaca o douto estudioso de religiões Reza Aslan numa das exegeses mais importantes e consistentes já produzidas sobre os evangelhos, Zelota (leia uma boa reportagem aqui).

Também mexeu muito comigo a tese levantada por um dos pais da contracultura, Norman O. Brown, em seu clássico absoluto, Vida contra morte (1959): a de que o pecado cometido pela humanidade contra o Pai já foi purgado por milênios de calvário, sendo chegada a hora de resgatarmos a promessa de liberdade e plenitude que o Filho trazia e foi escamoteada por visões religiosas que preferem enfatizar os horrores da crucificação, para tanger seus rebanhos ao conformismo.

Tudo a ver com esta canção que, comparando o calvário longínquo de Jesus ao calvário permanente dos ciganos, é uma altaneira negação do Cristo dos crucifixos (sois pecadores, arrependei-vos!) para afirmar o que andava sobre as águas (tudo podeis, libertai-vos!).

Eis a letra completa de La Saeta:

Dijo una voz popular:
¿Quién me presta una escalera
para subir al madero
para quitarle los clavos
a Jesús el Nazareno?

Oh, la saeta, el cantar

al Cristo de los gitanos
siempre con sangre en las manos,
siempre por desenclavar.

Cantar del pueblo andaluz

que todas las primaveras
anda pidiendo escaleras
para subir a la cruz.

Cantar de la tierra mía

que echa flores
al Jesús de la agonía
y es la fe de mis mayores.

¡Oh, no eres tú mi cantar

no puedo cantar, ni quiero
a este Jesús del madero
sino al que anduvo en la mar!

E aqui, a interpretação mais empolgante que dela encontrei no Youtube:

O CAPITALISMO NOS OBRIGA A FLERTAR COM A MORTE

É de Norman O. Brown a tese de que o capitalismo, em sua fase terminal, tornou-se agente da destruição da humanidade.

A teorização dele em Vida contra morte (1959) é tão complexa que os resumos se tornam inevitavelmente reducionistas e empobrecedores. É melhor mesmo enfrentarmos a obra, uma das poucas que trazem reais subsídios à compreensão do nosso tempo… mesmo meio século depois!
O certo é que, indo além do óbvio ululante de que o capitalismo já esgotou sua função histórica e está prenhe de revolução, O. Brown dissecou com ferramentas freudianas, exaustivamente, as características que o vampiro assume em sua sobrevida artificial, concluindo que ele cataliza as energias destrutivas dos homens, voltando-as contra eles.
Fantasioso? Se pensarmos na destruição e no caos que estão à nossa espera nas próximas décadas, decorrentes das agressões insensatas ao meio ambiente, perceberemos que ele foi, isto sim, profético.
Vide, p. ex., esta notícia da Agência Brasil, assinada pela repórter Renata Giraldi, que aproveitou despachos da BBC e de outras agências internacionais:
O mundo está ‘perigosamente’ despreparado para lidar com futuros desastres naturais, advertiu a agência de desenvolvimento internacional da Grã-Bretanha. A agência britânica informou que o despreparo é causado pela ausência de contribuição dos países ricos ao fundo de emergência mundial.
O fundo de emergência é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas, criada como resposta a tsunamis, com o objetivo de auxiliar regiões afetadas por desastres naturais.
De acordo com informações de funcionários da ONU, o fundo emergencial sofre com um déficit equivalente a R$ 130,5 milhões para 2012.
A escassez do fundo, segundo especialistas, tem relação direta com a série de tragédias naturais que ocorreram ao longo de 2011, como o tsunami seguido por terremoto no Japão; a sequência de tremores de terra na Nova Zelândia, enchentes no Paquistão e nas Filipinas e fome no Chifre da África.
Ontem (26) peritos japoneses e estrangeiros concluíram que medidas de precaução adequadas poderiam ter evitado os acidentes radioativos, na Usina de Fukushima Daiichi, no Nordeste do Japão, em 11 de março deste ano…
…Segundo eles, houve falhas no que se refere às influências de terremotos e tsunamis na estrutura física da usina.

Resumo da opereta: o lucro é a prioridade máxima, dane-se a nossa sobrevivência! A mesma lógica   perversa se constata numa infinidade de outras ocorrências. O capitalismo nos obriga a flertar com a morte.

O pensador nascido no México, filho de um casal estadunidense, apostava na  ressurreição dos corpos, na liberação do erotismo para derrotarmos a repressão e a morte –um pouco na linha de Wilhelm Reich, só que com argumentação bem mais sofisticada.
Contudo, deve ser também considerada a tese de Herbert Marcuse sobre a  dessublimação repressiva  sob o capitalismo, ou seja, uma dessublimação meia-boca, que não extingue a repressão.
É como pode ser considerada a atual banalização do sexo como descarga física, sem real envolvimento amoroso.
Ou seja, o sexo casual, coisificado, em que os parceiros usam um ao outro para obterem seu prazer egoísta, sem doação, sem verdadeiramente se complementarem.
Este acaba reforçando a repressão, ao deslocá-la para o outro oposto: em lugar do amor com sexo travado de outrora, o sexo animalizado de hoje, dissociado do amor.
Já encontrei moças que, nuas e oferecidas, recusavam-se a ser beijadas na boca, como antes era atitude comum das prostitutas. Só faltava repetirem a frase que Hollywood costuma atribuir aos gangstêres: “Não é pessoal, são só negócios”…
Neste sentido, acredito em O. Brown: a plenitude amorosa –em que o amor físico e espiritual são uma e a mesma coisa, com a identidade dos parceiros se dissolvendo num conjunto maior, quando um mais um soma bem mais do que dois– continua incompatível com o capitalismo.

Transgride-o e o transcende, empurrando os domesticados seres humanos para uma convivência amorosa/harmoniosa com o(a) outro(a) –e, por extensão do mesmo clima, com todos os demais  e com a natureza.

Impelindo-os, enfim, à aventura da libertação.

VALE A PENA LER DE NOVO: "A FRASE DE FIDEL E O BESTEIROL DO PIG"

Que moral os defensores do capitalismo
têm para tripudiarem sobre Cuba?

A grande imprensa brasileira saudou efusivamente a afirmação de Fidel Castro, de que o modelo econômico cubano não funcionaria (mais tarde relativizada por ele, sob a alegação de não era exatamente isto que queria dizer).

troféu PIG  coube a Suely Caldas que, em O Estado de S. Paulo, deitou falação sobre o que está muito além dos seus conhecimentos:

“A esperança de um mundo igual e justo, lançada por Karl Marx e Friedrich Engels no século 19, não logrou sucesso em nenhuma das experiências socialistas vividas ao longo do século 20. Entre outras razões de ordem econômica, também porque nunca conseguiram se sustentar sem a imposição de uma ditadura a subjugar uma população que ansiava por liberdade”.

Para Marx, a construção do socialismo
começaria pelos países desenvolvidos

Até quando será invocado o santo nome de Marx em vão?

Ele jamais pregou a construção do socialismo em países isolados e atrasados.
Acreditava que, como consequência de suas próprias contradições (principalmente a apropriação individual do produto do trabalho coletivo), o capitalismo passaria a frear o desenvolvimento das forças produtivas, ao invés de o alavancar.
Então, em sua marcha para o progresso, a humanidade seria obrigada a evoluir para uma forma de organização econômica, política e social que libertasse as forças produtivas do jugo do lucro.
Ou seja, em termos simplificados, o contínuo crescimento da produção era limitado pelo fato de que os produtores, ao serem espoliados de uma parcela do resultado do seu labor, não tinham meios para adquirir tantos produtos quanto geravam.
Então, essa produção que excedia o poder aquisitivo dos consumidores era destruída (queimas de café para evitar a queda do preço no mercado, p. ex.) ou, por mecanismos indiretos,  remanejada: a economia se voltava para atividades parasitárias ou para a indústria de guerra.
Maneira capitalista de criar um “mercado” para os
produtos que os consumidores não conseguem adquirir

Ou seja, o peso descomunal que o setor financeiro adquiriu no capitalismo do século 20 foi uma forma de manter pessoas trabalhando para nada produzirem de útil, necessário ou válido. É a condenação mais gritante de um sistema putrefato, que mantém os homens a labutarem em vão, quando poderiam estar trabalhando muito menos e vivendo muito melhor, livres do tacão da necessidade e do estresse da competição encarniçada.

As duas guerras mundiais e os muitos conflitos localizados, idem. Em vez de se direcionar o esforço dos seres humanos para melhorar a existência dos seres humanos, passou-se a empregá-lo no seu extermínio.
Como alternativa, as grandes recessões periódicas que assolam o capitalismo até hoje.
1929: a pior crise cíclica do capitalismo

Antes, a superprodução desembocava automaticamente na crise.

Depois, para permitir que os consumidores adquirissem aquilo que não podiam pagar, criaram-se mecanismos de crédito que resolvem o problema imediato, mas, como bola de neve, acabam gerando dívidas impagáveis à frente.
Até que essa economia artificial, fictícia, estoura como bolha de sabão.
Exatamente como Marx dizia, a contradição insolúvel do capitalismo engendrará crises cíclicas até que ele seja superado pela racionalidade econômica.
Elas podem não ocorrer mais a cada dez anos, mas continuam tão inevitáveis quanto antes.
Face a tal mostrengo, como ousa e jornalista empertigada criticar o socialismo real? Quem tem algo a dizer sobre ele somos nós, não ela.
REVOLUÇÃO MUNDIAL x SOCIALISMO NUM SÓ PAÍS
No princípio, os  profetas  apregoavam uma maré revolucionária que uniria e imantaria os proletários de todos os países, varrendo o planeta. É o que lemos no mais inspirado panfleto político que a humanidade já produziu, o Manifesto do Partido Comunista de 1848.
Levando em conta não só que os trabalhadores do mundo inteiro estavam irmanados pela sina de terem uma substancial parcela da riqueza que geravam (a mais-valia) expropriada pelo patronato, como também que a exploração capitalista havia subjugado países e culturas, submetendo proletários de todos os quadrantes a uma mesma lógica de dominação, os papas do marxismo profetizaram que o socialismo seria igualmente implantado em escala global, começando pelas nações de economias mais avançadas e se estendendo a todas as outras.
A Comuna de Paris, esmagada pelos reacionários
franceses e invasores estrangeiros

O movimento revolucionário foi, pouco a pouco, conquistado pela premissa teórica do internacionalismo, ainda mais depois que a heróica Comuna de Paris foi esmagada em 1871 pela ação conjunta de tropas reacionárias francesas com o invasor alemão.

Se as nações capitalistas conjugariam suas forças para sufocar qualquer governo operário que fosse instalado, então os movimentos revolucionários precisariam também transpor fronteiras, para terem alguma chance de êxito – foi a conclusão que se impôs.

Outra, de consequências trágicas: a tese de que, como era desigual o ritmo com que as nações amadureciam para a experiência socialista, poderia se recorrer a uma ditadura momentânea do proletariado (já que a Comuna de Paris parecera ter sido derrotada por excesso de brandura) naquelas que se libertassem primeiramente, para resistirem ao capitalismo agonizante até que a revolução vencesse no mundo inteiro.
1917: o poder estava à mão, mas caberia uma 
revolução marxista em país tão atrasado?

No entanto, a ditadura do proletariado deveria se tornar cada vez menos ditadura, tendo a função de preparar as condições para seu desaparecimento, por obsolescência.

Em 1917, surgiu a primeira oportunidade de tomada de poder pelos revolucionários desde a Comuna de Paris. E os bolcheviques discutiram apaixonadamente se seria válida uma revolução em país tão atrasado como a Rússia – uma verdadeira heresia à luz dos ensinamentos marxistas.
Para Marx, o socialismo viria distribuir de forma equânime as riquezas geradas sob o capitalismo, de forma que beneficiassem o conjunto da população e não apenas uma minoria privilegiada. Então, ele sempre augurara que a revolução mundial começaria nos países capitalistas mais avançados, como a Inglaterra, a França e a Alemanha.
A “grande fome” de 1932/33, na Ucrania: o
stalinismo surgiu em circunstâncias dramáticas

Um governo revolucionário na Rússia seria obrigado a cumprir tarefas características da fase da acumulação primitiva do capital, como a criação de infra-estrutura básica e a industrialização do país. O justificado temor de alguns dirigentes bolcheviques era de que, assumindo tais encargos, a revolução acabasse se desvirtuando irremediavelmente.

Prevaleceu, entretanto, a posição de que a revolução russa seria o estopim da revolução mundial, começando pela tomada de poder na Alemanha. Então, alavancada e apoiada pelos países socialistas mais prósperos, a construção do socialismo na Rússia se tornaria viável.
Os bolcheviques venceram, mas seus congêneres alemães foram derrotados em 1918. A maré revolucionária acabou sendo contida e, como se previa, várias nações capitalistas se coligaram para combater pelas armas o nascente governo revolucionário. Mesmo assim, o gênio militar de Trotsky acabou garantindo, apesar da enorme disparidade de forças, a sobrevivência da URSS.
O gênio militar de Trotsky e a falta de
coordenação dos reacionários salvou a URSS

Quando ficou evidente que a revolução mundial não ocorreria tão cedo, a União Soviética tratou de sair sozinha da armadilha em que se colocara. Devastada e isolada, precisou criar uma economia moderna a partir do nada.

Nenhum ardor revolucionário seria capaz de levar as massas a empreenderem esforços titânicos e a suportarem privações dia após dia, indefinidamente. Só mesmo a força bruta garantiria essa mobilização permanente, sobre-humana, de energias para o desenvolvimento econômico. A tirania stalinista cumpriu esse papel.
A revolução nunca mais voltou aos trilhos marxistas. Como único país dito socialista, a URSS passou a projetar mundialmente seu modelo despótico, que encontrou viva rejeição nas nações avançadas. Nestas, as únicas adesões não se deveram à atuação política dos trabalhadores, mas sim às baionetas do Exército Vermelho, quando da vitória sobre o nazismo.
Tomada autêntica de poder houve em outros países pobres e atrasados, como a China, Cuba, Vietnã e Camboja. E todos repetiram a trajetória para o modelo autoritário do socialismo num só país stalinista.
AVANÇO TECNOLÓGICO x LETARGIA ECONÔMICA

Um divisor de águas: a queda do muro de Berlim. O
capitalismo vitorioso logo exibiria sua face odiosa.

Mas, a arregimentação autoritária da mão-de-obra só funcionou a contento na etapa da industrialização pesada.

Na segunda metade do século 20, a economia capitalista avançou noutra direção, a da sofisticação tecnológica, da miniaturização, da gestação sôfrega de novas manias consumistas. Informática, biotecnologia, novos materiais, novos processos.
O avanço movido a ganância, com base no talento individual, na pesquisa e na tecnologia, derrotou a economia letárgica da URSS, tornada jurássica da noite para o dia, e sua  nomenklatura  arrogante que se reservava todos os privilégios.
Comprovava-se a máxima marxista segundo a qual são os países com forças produtivas mais desenvolvidas que determinam os rumos da humanidade.
O bloco soviético desabou como uma fruta apodrecida. Seus países voltaram ao capitalismo e à democracia burguesa.
A China conseguiu manter o sistema político autoritário, à custa de mesclar a economia estatizada com a iniciativa privada. Criou o pior dos mundos possíveis: algo assim como o milagre brasileiro, com a falta de liberdade sendo aceita em função das melhoras materiais proporcionadas pelo regime (e do espírito tradicionalmente submisso dos asiáticos).

Sobrou para os idealistas do século 21 a missão de recolocar a revolução nos trilhos, para que ainda seja cumprindo o sonho original de Marx: não apenas regimes híbridos em países isolados, mas sim o planeta inteiro transformado no “reino da liberdade, para além da necessidade”, em que:
  • cada cidadão contribua no limite de suas possibilidades para que todos os cidadãos tenham o suficiente para suprirem as suas necessidades e desenvolverem plenamente as suas potencialidades; e
  • o estado desapareça, com os cidadãos assumindo a administração das coisas como parte de sua rotina e a ninguém ocorra administrar os homens, já que eles serão, para sempre, sujeitos da sua própria História.

Engendrarmos uma onda revolucionária capaz de varrer o planeta é tarefa gigantesca? É.

Mas, em relação ao século 19, há uma mudança importante: ela se tornou muito mais necessária, como alternativa à regressão — talvez, até, à própria aniquilação — da humanidade.
Pois, salta aos olhos que, mantida a prioridade dos interesses individuais sobre os coletivos, a exaustão de recursos naturais e as catástrofes ecológicas reduzirão drasticamente os contingentes humanos, ou os exterminarão de vez.
A opção a fazermos, como disse Norman O. Brown, agora é entre a vida numa sociedade solidária e harmoniosa, ou a morte sob o capitalismo excludente e predatório.

Mas, para que a última palavra seja otimista, prefiro os sonhos dos artistas, antenas da raça.

Assim, encerrarei com  a bela antevisão do Geraldo Vandré, de um futuro que podemos, sim, construir:, apesar de todos os percalços:  “Quem sabe o canto da gente, seguindo na frente, prepare o dia da alegria”.

O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE: CELULARES CAUSAM CÂNCER CEREBRAL

Segundo eminente epidemiologista dos EUA, esta é uma
advertência que deveria estar sendo feita há muito tempo.

Foi Norman O. Brown quem, combinando teses marxistas e freudianas em seu clássico Vida Contra Morte (1959), lançou uma advertência aterradora: esgotada sua função histórica sem ter sido substituído por um sistema econômico mais avançado, o capitalismo passou a cumprir o papel de uma espécie de agente coletivo do instinto de morte.

Fantasioso? Nem tanto.
Afinal, entre os riscos cada vez maiores de extinção da espécie humana como consequência das alterações climáticas e os interesses das indústrias causadoras do aquecimento global, todos sabemos qual prato está pesando mais na balança. Que cada um de nós tenha seu carro próprio para desfrutar a vida, enquanto existir vida. E que se danem os que virão (viriam?) depois…
Da mesma forma, é bem possível que, com a utilização obsessiva de celulares, estejamos condenando nossas crianças ao câncer no cérebro.
O alerta foi lançado pela epidemiologista estadunidense Devra Davis, que acrescenta: há um óbvio esforço de acobertamento dessa ameaça.
Mais um, aliás. Todos também sabemos, p. ex., que se a imprensa cumprisse sua missão de bem informar os cidadãos sobre a verdadeira máquina assassina chamada motocicleta, só kamikazes as continuariam utilizando.
Eis algumas interessantíssimas declarações de Devra Davis à revista Época:
“Celulares são aparelhos que emitem e captam ondas de rádio. Há muitas formas de ondas. As de maior potência são os raios X. Eles podem danificar o DNA das células de qualquer ser vivo, com efeitos sabidamente cancerígenos. A potência da radiação das micro-ondas de um celular é muito menor que a radiação de uma máquina de raio X. O problema dos celulares reside em sua exposição prolongada ao corpo humano, especialmente sobre os neurônios cerebrais. Quantos minutos ao dia falamos ao celular, 365 dias por ano, por anos a fio? O poder cumulativo dessa radiação pode alterar uma célula e torná-la cancerígena.
“Em meu livro (Disconnect, 2010), faço um levantamento de dezenas de estudos científicos feitos com rigor em todo o mundo, que provam sem sombra de dúvida o perigo do uso de celulares. Um dos autores, aliás, é brasileiro: o professor Álvaro Augusto Almeida de Salles, da Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). (…) Salles é um dos maiores especialistas mundiais no tema.
“O FCC [a agência de telecomunicações dos EUA] estabelece um limite máximo de absorção pelo corpo humano de radiação de celulares. Todos os fabricantes devem fazer aparelhos para operar dentro do limite de 1,6 watt por quilo de tecido humano. Salles provou que o limite do FCC só é seguro para os adultos. Ao simular a absorção de radiação celular por crianças de até 10 anos, descobriu valores de absorção 60% mais elevados que nos adultos. O recado é claro. Não deixe o celular ao alcance das crianças. Não deixe seus filhos menores de 10 anos usar celular.
“O limite [máximo de absorção] foi estabelecido [pelo FCC] no início dos anos 1990, quando os celulares começavam a se popularizar. Foi estabelecido tomando por base uma pessoa de 1,70 metro de altura e uma cabeça com peso aproximado de 4 quilos. Vinte anos depois, o limite é irrelevante. Mais de 4,6 bilhões de pessoas no mundo usam celular. Boa parte são crianças, adolescentes e mulheres. E todos estão expostos a níveis de radiação superiores ao permitido. Quais serão as consequências em termos de saúde pública da exposição lenta, gradual e maciça de tantas pessoas à radiação celular, digamos, daqui a dez ou 15 anos? O tumor cerebral se tornará epidêmico?
“Tenho documentos para provar que existe um esforço sistemático e concentrado da indústria de telecomunicações para desacreditar ou suprimir pesquisas cujos resultados não lhe favorecem, como a do professor Salles provando o risco dos celulares para as crianças. Quando um estudo assim é publicado, a indústria patrocina outros estudos para desmenti-lo. Não há dúvida de que a maioria dos estudos publicados sobre a radiação de radiofrequência e o cérebro não mostra nenhum impacto. A maioria das evidências mostra que a radiação dos celulares tem pequeno impacto biológico. Mas há diversas formas de cozinhar os dados de uma pesquisa para invalidá-los ou evitar que se chegue ao resultado desejado.
“[respondendo à objeção de que não é prático usarmos os celulares sempre com fones de ouvido, como deveríamos] Também não é prático expor o cérebro desnecessariamente às micro-ondas emitidas pelos celulares. Essa medida, aliás, é uma exigência do FCC (…) e recomendada por todos os fabricantes de celulares. Mas, convenientemente, a recomendação não vem escrita no manual do produto. É preciso baixar o guia de informações de segurança do site de cada fabricante para saber que eles próprios recomendam que ninguém cole o celular ao ouvido.
“A indústria de telecomunicações é uma das poucas que continuam crescendo no momento atual. Ela paga muitos impostos e gasta muito em publicidade. Usa as mesmas táticas dos fabricantes de cigarros e bebidas. A indústria de telecomunicações é grande, poderosa e rentável. Contra isso, a única arma possível é a informação. É o que estou fazendo com meu livro. Abandonei uma carreira acadêmica consagrada de 30 anos porque é hora de impedir que, no futuro, o mau uso do celular cause um mal maior. Os especialistas que me ajudaram na coleta de dados, muitos secretos, nunca revelados, o fizeram porque são pais e avós que querem o melhor para seus filhos e netos”.

THANATOS EXPLICA

Quanto mais o capitalismo putrefato se evidencia como ameaça terrível à sobrevivência da humanidade, mais se impõe uma releitura dos proféticos autores que há décadas nos alertaram: perpetuando-se para além do esgotamento de sua função histórica, o capitalismo assumiria na sobrevida o papel de  agente  do instinto de morte.

São eles Herbert Marcuse (Eros e Civilização, 1955) e Norman O. Brown (Vida Contra Morte, 1959), cujas teorias são complexas demais para serem adequadamente abordadas neste post.
Vale notar, entretanto, que, aplicando à análise histórica os ensinamentos freudianos, eles chegaram a conclusões não muito diferentes das de Friedrich Engels no século XIX, em sua advertência célebre: se o capitalismo conseguisse represar indefinidamente a revolução necessária para que a História continuasse avançando, provocaria o advento da barbárie, como aconteceu com o Império Romano.
Enfim, os sinais estão todos aí. Desde os riscos cada vez maiores de sucumbirmos ao aquecimento do planeta e ao esgotamento de recursos naturais necessários para a sobrevivência da espécie humana,devido à prioridade do lucro sobre o bem comum, até os reveladores/presságos  absurdos nossos de cada dia.
Caso da decisão da Justiça Federal anunciada nesta 5ª feira (29), suspendendo a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que restringia a publicidade de alimentos com altos teores e açúcar, sódio e gorduras trans e saturadas.
Ou seja, que os homens se tornem cada vez mais obesos e estourem de enfarte, de preferência à queda do faturamento dos fabricantes desses venenos e das agências de publicidade que os impingem.
Thanatos explica.

PARA (REALMENTE) ENTENDER A QUEDA DO MURO DE BERLIM

A queda do muro de Berlim, há 20 anos, marcou o fim do chamado socialismo real – a tentativa de construção do socialismo com o descarte de algumas das premissas básicas fixadas por Karl Marx e Friedrich Engels em meados do século 19.

No princípio, os profetas apregoavam uma maré revolucionária que uniria e imantaria os proletários de todos os países, varrendo o planeta. É o que lemos no mais inspirado panfleto político que a humanidade já produziu, o Manifesto do Partido Comunista de 1848.

Levando em conta não só que os trabalhadores do mundo inteiro estavam irmanados pela sina de terem uma substancial parcela da riqueza que geravam (a mais-valia) expropriada pelo patronato, como também que a exploração capitalista havia subjugado países e culturas, submetendo proletários de todos os quadrantes a uma mesma lógica de dominação, os papas do marxismo profetizaram que o socialismo seria igualmente implantado em escala global, começando pelas nações de economias mais avançadas e se estendendo a todas as outras.

O movimento revolucionário foi, pouco a pouco, conquistado pela premissa teórica do internacionalismo, ainda mais depois que a heróica Comuna de Paris foi esmagada em 1871 pela ação conjunta de tropas reacionárias francesas com o invasor alemão. Se as nações capitalistas conjugariam suas forças para sufocar qualquer governo operário que fosse instalado, então os movimentos revolucionários precisariam também transpor fronteiras, para terem alguma chance de êxito – foi a conclusão que se impôs.

A Internacional Socialista, que havia sido fundada sete anos antes, soçobrou principalmente devido ao impacto da derrota da Comuna de Paris sobre o conjunto do movimento operário europeu, mas a semente plantada frutificou na poderosa 2ª Internacional, que aglutinou em 1889 os grandes partidos socialistas consolidados nesse ínterim.

A bonança, entretanto, não fez bem a esses partidos. Muitos dirigentes, deslumbrados com os aparelhos conquistados, passaram a querer mantê-los a qualquer preço, lutando por melhoras para a classe operária do seu próprio país, em detrimento da solidariedade internacional. E teorizaram que o socialismo poderia surgir a partir das reformas realizadas pacificamente e do crescimento numérico da classe média, sem necessidade de uma revolução.

A deflagração da 1ª Guerra Mundial cindiu definitivamente o movimento revolucionário: os reformistas acabaram alinhados com os governos de seus respectivos países no esforço guerreiro, enquanto os marxistas conclamaram os proletários a não dispararem contra seus irmãos de outras nações.

Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo encabeçaram a reação contra os (por eles designados pejorativamente como) sociais-patriotas e os trâmites para a fundação da 3ª Internacional, contraponto àquela que perdera sua razão de ser.

O socialismo num só país – Em 1917, surgiu a primeira oportunidade de tomada de poder pelos revolucionários desde a Comuna de Paris. E os bolcheviques discutiram apaixonadamente se seria válida uma revolução em país tão atrasado como a Rússia – uma verdadeira heresia à luz dos ensinamentos marxistas.

Para Marx, o socialismo viria distribuir de forma equânime as riquezas geradas sob o capitalismo, de forma que beneficiassem o conjunto da população e não apenas uma minoria privilegiada. Então, ele sempre augurara que a revolução mundial começaria nos países capitalistas mais avançados, como a Inglaterra, a França e a Alemanha.

Um governo revolucionário na Rússia seria obrigado a cumprir tarefas características da fase da acumulação primitiva do capital, como a criação de infra-estrutura básica e a industrialização do país. O justificado temor de alguns dirigentes bolcheviques era de que, assumindo tais encargos, a revolução acabasse se desvirtuando irremediavelmente.

Prevaleceu, entretanto, a posição de que a revolução russa seria o estopim da revolução mundial, começando pela tomada de poder na Alemanha. Então, alavancada e apoiada pelos países socialistas mais prósperos, a construção do socialismo na Rússia se tornaria viável.

Os bolcheviques venceram, mas seus congêneres alemães foram derrotados em 1918. A maré revolucionária acabou sendo contida no mundo inteiro e, como se previa, várias nações capitalistas se coligaram para combater pelas armas o nascente governo revolucionário. Mesmo assim, o gênio militar de Trotsky acabou garantindo, apesar da enorme disparidade de forças, a sobrevivência da URSS.

Quando ficou evidente que a revolução mundial não ocorreria tão cedo, a União Soviética tratou de sair sozinha da armadilha em que se colocara. Devastada e isolada, precisou criar uma economia moderna a partir do nada.

Nenhum ardor revolucionário seria capaz de levar as massas a empreenderem esforços titânicos e a suportarem privações dia após dia, indefinidamente. Só mesmo a força bruta garantiria essa mobilização permanente, sobre-humana, de energias para o desenvolvimento econômico. A tirania stalinista cumpriu esse papel.

A revolução nunca mais voltou aos trilhos marxistas. Como único país dito socialista, a URSS passou a projetar mundialmente seu modelo despótico, que encontrou viva rejeição nas nações avançadas. Nestas, as únicas adesões não se deveram à atuação política dos trabalhadores, mas sim às baionetas do Exército Vermelho, quando da vitória sobre o nazismo.

Tomada autêntica de poder houve em outros países pobres e atrasados, como a China, Cuba, Vietnã e Camboja. E todos repetiram a trajetória para o modelo autoritário do socialismo num só país stalinista.

O grande feito da URSS: derrotar Hitler – Este conseguiu, é verdade, fazer com que a economia da URSS avançasse praticamente um século em duas décadas (as de 1920 e 1930), o que foi fundamental para o país conseguir a proeza praticamente impossível de quebrar a espinha do nazismo.

Pois, é preciso que se diga: Hitler foi vencido na União Soviética, quando comprometeu o melhor da sua máquina de guerra numa derrota contundente.

Ao se retirar, já estava irremediavelmente derrotado. As forças aliadas apenas completaram o serviço.

Mas, a arregimentação autoritária da mão-de-obra só funcionou a contento na etapa da industrialização pesada.

Na segunda metade do século 20, a economia capitalista avançou noutra direção, a da sofisticação tecnológica, da miniaturização, da gestação sôfrega de novas manias consumistas. Informática, biotecnologia, novos materiais, novos processos.

O avanço movido a ganância, com base no talento individual, na pesquisa e na tecnologia, derrotou a economia letárgica da URSS, tornada jurássica da noite para o dia, e sua nomenklatura arrogante que se reservava todos os privilégios.

Comprovava-se a máxima marxista segundo a qual são os países com forças produtivas mais desenvolvidas que determinam os rumos da humanidade.

O bloco soviético desabou como uma fruta apodrecida. Seus países voltaram ao capitalismo e à democracia burguesa.

A China conseguiu manter o sistema político autoritário, à custa de mesclar a economia estatizada com a iniciativa privada. Criou o pior dos mundos possíveis: algo assim como o milagre brasileiro, com a falta de liberdade sendo aceita em função das melhoras materiais proporcionadas pelo regime (e do espírito tradicionalmente submisso dos asiáticos).

Sobrou para os idealistas do século 21 a missão de recolocar a revolução nos trilhos, para que ainda seja cumprindo o sonho original de Marx: não apenas regimes híbridos em países isolados, mas sim o planeta inteiro transformado no “reino da liberdade, para além da necessidade”, em que:

  • cada cidadão contribua no limite de suas possibilidades para que todos os cidadãos tenham o suficiente para suprirem as suas necessidades e desenvolverem plenamente as suas potencialidades; e
  • o estado desapareça, com os cidadãos assumindo a administração das coisas como parte de sua rotina e a ninguém ocorra administrar os homens, já que eles serão, para sempre, sujeitos da sua própria História.
Engendrarmos uma onda revolucionária capaz de varrer o planeta é tarefa gigantesca? É.

Mas, em relação ao século 19, há uma mudança importante: ela se tornou muito mais necessária, como alternativa à regressão — talvez, até, à própria aniquilação — da humanidade.

Pois, salta aos olhos que, mantida a prioridade dos interesses individuais sobre os coletivos, a exaustão de recursos naturais e as catástrofes ecológicas reduzirão drasticamente os contingentes humanos, ou os exterminarão de vez.

A opção a fazermos, como disse Norman O. Brown, agora é entre a vida numa sociedade solidária e harmoniosa, ou a morte sob o capitalismo excludente e predatório.

RESISTÊNCIA: MEMÓRIA, REFLEXÃO, PERSPECTIVAS

“Sometimes I feel so uninspired”, lamentou-se o Steve Winwood, numa bela canção do repertório do Traffic.
Hoje, para mim, é um desses dias. Talvez porque o noticiário não esteja nada inspirador: nenhuma notícia ou artigo, dos muitos que eu li, pareceu-me acrescentar algo ao que já se sabia. E eu detesto chover no molhado.

Então, lembrei-me de uma entrevista que concedi recentemente à comunidade Ditadura Militar do Orkut (íntegra aqui) , a convite do meu bom amigo Alex Monnerat — caso raro de jurista que é dono de comunidade dedicada a um assunto fora de sua área profissional. Ele dá uma contribuição valiosíssima para que a temática política seja discutida de forma consistente e civilizada.

Deve ter sido a entrevista mais consistente das que já participei, em várias comunidades (Palpiteiros do Orkut, Apesar de Você…1964/85, Meus Pensamentos & Entrevistas, ALN Ação Libertadora Nacional e mais duas ou três cujo nome não recordo).

Talvez algumas passagens possam interessar aos leitores deste blogue. Eis as que avaliei como mais significativas:

FERNANDO CLAROQual sua opinião, hoje, sobre as reais condições de quem escolheu seu caminho e o regime que se pretendia derrubar. Ou seja, a correlação de forças, como você a vê atualmente?

A correlação de forças não nos parecia tão desfavorável assim no primeiro semestre de 1969, logo após a assinatura do AI-5. Chegamos a surpreender a ditadura, que não esperava ações tão eficientes de nossa parte.
No entanto, nós também subestimamos a capacidade de reaglutinação do inimigo: com a criação da Oban para combater a luta armada em SP (depois expandida para todo o Brasil, com a disseminação dos DOI-Codi’s), o aprendizado de técnicas de tortura com instrutores estadunidenses, a generalização das práticas hediondas (que atingiram um patamar de máxima bestialidade), etc., eles conseguiram tomar a dianteira da guerra, DO PONTO DE VISTA MILITAR, no 2º semestre.
O golpe de misericórdia foi a injeção maciça de recursos externos para criar uma euforia econômica em 1970. Em 1969, a própria classe média discordava dos militares, embora estivesse amedrontada demais para nos apoiar francamente. Em 1970, com investimentos na Bolsa de Valores e fusquinha na garagem, passou a aplaudir o regime. Então, em desvantagem nas duas frentes (militar e política), nossa derrota era só questão de tempo.
Mas, sempre digo nas minhas palestras que, se um milhar de resistentes não tivesse ousado confrontar aquele terrorismo de estado dantesco, seríamos um povo muito desprezível. Não ganhamos a guerra, mas salvamos a honra dos brasileiros, exatamente como a Resistência Francesa, sem cuja existência a França seria identificada com Pétain e a República de Vichy.

CARLOSVocê via na época as ações como atos de resistência ou como parte de um projeto revolucionário de tomada de poder?

Francamente! Não éramos doidos varridos. Sabíamos muito bem que a luta seria dificílima e que nenhum grupo, partido ou organização tinha condições de derrotar a ditadura sozinho.
Então, já que precisaríamos lutar em frente e os outros grupos não tinham exatamente os mesmos pontos-de-vista, o que supúnhamos era a constituição de um tipo de parlamento no “day after”, para que as disputas políticas se processassem civilizadamente.
Acreditávamos que, no final da linha, prevaleceria a posição mais coerente. Mas, tínhamos clareza de que o processo revolucionário brasileiro seria bem diferente do cubano, p. ex., com um único grupo dirigente chegando ao poder.
No nosso caso, seria um saco de gatos chegando ao poder. E o exemplo da Revolução Francesa, claro, nos assustava. Não queríamos lutas políticas resolvidas à bala ou com guilhotinas. Pretendíamos aproveitar as lições da História para não incorrermos nos erros do passado.

LUCIANO Pode-se dizer que existe um movimento da extrema direita na internet preocupada em distorcer a história do período do regime militar?

Os sites fascistas difundem aquilo que os militares concluíram a partir dos seus Inquéritos Policiais-Militares, todos eles conduzidos com a prática generalizada e exacerbada da tortura. É claro que os IPM’s não têm valor legal nenhum nem servem como referência histórica.
Várias vezes já comentei que, em cada ação armada da esquerda, os IPM’s relacionavam muito mais participantes do que os que realmente estiveram envolvidos na operação. Por que? Porque obtiveram essas informações de caras que estavam pendurados no pau-de-arara tomando choques. Então, o torturado só se preocupava em evitar a prisão dos companheiros, não estava nem aí para enquadramentos legais.
Se o torturador perguntava “Fulano estava no sequestro?”, o torturado, percebendo que era nisso que o fdp acreditava, dizia que sim. Não se desperdiçava energia para resistir nesse aspecto. O que importava mesmo era preservar as informações que levassem a quedas e desbaratamento de nossa estrutura.
Então, os tais IPM’s não passam de um samba-do-crioulo-doido. E esse pessoal de extrema direita, QUE CONSERVOU TUDO ISSO CONSIGO EM VEZ DE ENTREGAR PARA OS ARQUIVISTAS, deve até acreditar que está dizendo a verdade, nas acusações que lança contra cada um de nós.
Mas, é um rosário de fantasias. Já disseram até que eu fui jurado num tribunal revolucionário. Nem sequer conheço o militante que dizem ter sido julgado, nunca julguei ninguém na vida e não soube de nenhum tribunal convocado pela VPR durante minha militância.

FERNANDO CLAROSerá que não havia uma glamourização em decorrência do êxito da Revolução Cubana?

Nossa inspiração maior eram os tupamaros uruguaios, que conseguiam golpear a ditadura de lá e chegaram a montar uma estrutura tão eficaz que parecia imune ao desbaratamento.
Nós também tentávamos manter e fazer crescer a luta nas cidades. Pretendíamos derrubar a ditadura a partir da conjugação das lutas urbanas e rurais no país inteiro.
A coluna guerrilheira só teria função propagandística, no início. Cabia-lhe fustigar o inimigo e escapar, PROVANDO QUE OS MILITARES PODIAM SER DERROTADOS. Estávamos plenamente cientes de que, se tentássemos formar um exército no campo, ele seria esmagado pelo inimigo. A coluna deveria apenas sobreviver e servir como exemplo, não crescer.
Esta concepção, aliás, foi desenvolvida pelo Lamarca, conhecedor do poder de fogo do Exército. Já tínhamos deixado bem pra trás o foquismo dos cubanos.
De certa forma, a fuga mirabolante do Lamarca do Vale do Ribeira até lhe pareceu dar razão. Mas, ele deve ter percebido que a desigualdade de forças era tão acentuada que o passe de mágica dificilmente se repetiria. Aquela proeza foi fantástica… e única.

MARIA CAROLINAGostaria de saber sobre o financiamento da ditadura. Quem financiava a OBAN e os outros órgãos repressivos?

A Oban nasceu clandestina. Foi criada por oficiais das Forças Armadas, com o apoio financeiro de empresários fascistas. Esses caras eram tão podres que alguns deles iam até praticar torturar por mero sadismo. Como estavam pagando, tinham direito. Foi por saber dessas histórias todas que o delegado Sérgio Fleury, quando tentou chantageá-los, acabou morto, numa das versões mais difíceis de engolir que já ouvi na vida: era dono de barco e teria caído ao no mar, afogando-se. Acredite quem quiser.
É claro que, para os defensores dos direitos humanos no exterior, foi um prato cheio poderem trombetear que o Governo brasileiro mantinha um centro clandestino de tortura… com maior poder do que o Deops, a quem teoricamente deveria caber o papel de reprimir a luta armada.
Depois, houve a morte do Chael Charles Schreier, no RJ, que escandalizou o mundo. O Chael era de ascendência judaica e os judeus têm enorme repugnância por mortes dos seus em situações que lembrem as práticas nazistas.
O Chael morreu no quartel da PE da Vila Militar, no pau-de-arara. E os altos comandantes militares concluíram que a prática de cada Arma perseguir os militantes da luta armada por sua própria conta (de olho nas recompensas dos empresários fascistas e em tudo aquilo que apreendiam conosco e depois dividiam entre si) facilitava o descontrole. No caso do RJ, p. ex., a PE da Tijuca e a da Vila Militar não colaboravam entre si, mas competiam pelas presas.
Então, resolveram botar ordem na casa: decidiram, de um lado, legalizar a Oban, transformando-a em DOI-Codi/SP, de forma que passou a receber recursos do governo (o que não impediu os empresários de continuarem dando propinas “por fora”).
Do outro, unir as três Armas nesses DOI-Codi’s, de forma que nenhuma unidade saísse à caça por conta própria.
E, no caso do RJ, determinaram que só participaria do DOI-Codi a equipe da PE da Tijuca. A da Vila Militar foi excluída do esquema, até como punição por ter deixado o Chael morrer.

FERNANDO CLARONão temos a sociedade com que sonhamos. Como você vê que seja travada a luta na atualidade e em que peca o governo Lula?

O maior pecado do Governo Lula, sem dúvida, foi o de ter adotado uma política econômica neoliberal, para gaudio dos banqueiros e dos grandes empresários.
Mas, não vejo muita saída na política oficial, tanto que nem tenho criticado muito o Lula. Presumo que qualquer outro acabaria agindo da mesma maneira, já que o poder real é o econômico, sobrando pouquíssima margem de manobra para um presidente da República fazer verdadeiras mudanças.
Em suma: o fundamental é intocável e o presidente só tem autonomia para decidir o secundário.
É hora de apostarmos na organização autônoma e não-autoritária dos cidadãos, contra o capitalismo e contra o Estado.

CAMILA Qual o seu sonho de um país?

O meu sonho é, basicamente, o sonho original de Marx: a humanidade liberta dos grilhões da necessidade, sem fronteiras, estados nem forças repressivas, com as pessoas colaborando para o bem comum ao invés de focadas no progresso pessoal.
Depois, a repressão brutal dos exércitos estrangeiros à Comuna de Paris fez Marx retroceder um pouco, admitindo a necessidade do Estado enquanto o socialismo não se disseminasse por todo o planeta.
Só que não deu certo. As revoluções em países isolados, ou foram sufocadas, ou se desvirtuaram. Então, eu defendo a retomada do projeto de 1848: a revolução internacional e consensual (ou seja, com o aval da maioria dos trabalhadores), ao invés de revoluções nacionais e do vanguardismo.
O alerta que Trotsky lançou há um século permanece válido: “Primeiramente, o partido substituirá a classe operária. Depois. o Comitê Central substituirá o partido. Finalmente, um ditador substituirá o Comitê Central”.
Então, a tese leninista de que é necessária uma vanguarda para “explicar” a revolução ao povo atrasado resultou nefasta. Os trabalhadores têm de voltar a ser o sujeito da revolução, jamais seu objeto (ou seja, os beneficiários últimos das ações desenvolvidas em seu nome).

CAMILA Qual o seu sonho de governo?

A abolição de governos como entes separados e colocados acima da sociedade, com suas funções sendo assumidas e incorporadas à rotina diária do conjunto dos cidadãos. Em suma, uma atualização do modelo da democracia grega, em que as decisões eram tomadas pelos cidadãos reunidos em praça pública.
Aliás, vale lembrar que ser presidente, governador ou parlamentar não constituía profissão no início da própria democracia burguesa. Era uma honra e uma prestação de serviços à comunidade, não uma forma de ganhar dinheiro.
Hoje, a política oficial atrai principalmente os indivíduos que têm mentalidade criminosa mas são covardes demais para correrem os riscos inerentes ao banditismo. A escória da escória.

CAMILAVocê se identifica mais com o anarquismo e a falta de governo?

Hoje sou, sim, anarquista. Mas, eu não diria “falta de governo”. O governo se tornaria desnecessário, à medida que os cidadãos gerissem a si próprios, organizando-se para prover o necessário a cada um deles, de forma que pudessem todos desenvolver-se plenamente como seres humanos.

CAMILASe fosse dado a você o poder de reorganizar a sociedade, os meios de produção, imprensa, enfim, tudo, como seria a sociedade dos seus sonhos?

Se o aparato produtivo fosse todo direcionado para a produção do socialmente útil, cada cidadão desfrutaria de tudo de que realmente necessita, trabalhando apenas uma fração do que trabalha agora. E lhe sobraria tempo para viver.
Isto implica a extinção de tudo que é parasitário e inútil, como instituições financeiras, propaganda, forças repressivas, etc. Quando a humanidade sair de sua pré-história, não precisará de nada disso.
Se alguém quiser depois desperdiçar seu tempo livre criando/trocando/buscando artigos de luxo, será seu direito. Mas, talvez as pessoas aprendam que gratificante mesmo é o convivío fraterno com os iguais.
Num filme de Godard, uma frase maravilhosa foi atribuída a Lênin, mas nunca consegui confirmar se é verdadeira ou criada pelo próprio cineasta: a de que a ética seria a estética do futuro.
Aliás, uma pequena amostra do que seja viver numa coletividade em que cada um se preocupava com o outro e tentava seriamente contribuir para a felicidade alheia, eu tive vivendo em comunidade alternativa, em 1971/2.
Quando você tem laços profundos com as pessoas de sua convivência, não precisa de geringonças tecnológicas nem de objetos que firmam status. Tínhamos poucos bens, mas não sentíamos falta de nada.

CAMILA – Qual era a sociedade dos seus sonhos na adolescência e quando você militou nos movimentos de esquerda?

CELSO – Exatamente aquela a que me referi acima, a visão do Marx pré-Comuna de Paris. Uma sociedade em que cada um contribuísse no limite de suas possibilidades para que fossem atendidas as necessidades materiais de todos. O reino da liberdade, para além da necessidade – ou seja, com o homem livre de grilhões materiais, podendo gastar o melhor de suas energias para atividades criativas e prazerosas, não para essa competição obsessiva do capitalismo, essa corrida de ratos em que todos acabam, de uma forma ou de outra, derrotados. Era este o ponto de chegada de nossos esforços, o que nos animava a correr os riscos e suportar as dores daquela luta desigual que travamos.

CAMILAMudou em relação a hoje? No que a sua vida lhe modificou?

O sonho é o mesmo, só que eu era um jovem ingênuo, hoje sou um homem sofrido. Mas, continuo considerando que se justificam todos os esforços que eu possa fazer para legar um mundo bem melhor para minhas filhas e netos. O capitalismo atual é um pesadelo, conspurca tudo que há de belo, justo, digno e idealista nos seres humanos. Estimula e faz aflorar o que as pessoas têm de pior.

CAMILAQuais os seus conselhos aos jovens de hoje que você gostaria de ter recebido, quando também era jovem, dos mais velhos e experientes?

Talvez eu não estivesse disposto a ouvir esses conselhos. Talvez os jovens de hoje não queiram meus conselhos.
Mas, há duas lições aprendidas na minha caminhada, que eu tento passar às novas gerações: mais do que nunca, é necessário mudar o mundo, para que a vida valha realmente a pena ser vivida; mas, a empolgação nunca deve anular a reflexão, pois essas cruzadas envolvem riscos imensos.
Como dizia uma velha canção tropicalista: “É preciso estar atento e forte”, pois tudo é não só “divino-maravilhoso”, como também “perigoso”.

WALTER O você acha das idéias de Darcy Ribeiro, quando falava que tudo teria de partir da educação?

A verdadeira educação ajudaria muito. Mas, não essa que está aí agora.
A educação deveria ter o objetivo de formar cidadãos, no sentido maior do termo. Pessoas capazes de refletir sobre o mundo em que vivem e de nele atuarem conscientemente. Quem tem esse conhecimento mais amplo, domina facilmente as ferramentas da profissão que escolher.
No entanto, a educação foi aviltada e desvirtuada, passando a priorizar as ferramentas, as profissões; o secundário, enfim. Capacita um indivíduo para trabalhar num ramo qualquer e mais nada.
É por isso que hoje não formamos uma verdadeira elite, capaz de impor um rumo à sociedade e de evitar esse verdadeiro waterloo moral que as nossas instituições exibem. Já não temos dirigentes com visão de conjunto, apenas pessoas treinadas a pensar uma parte da parte.
Quanto à resistência à ditadura, o quadro então era bem diferente. Tínhamos, sim, uma juventude intelectualizada, brilhante e criativa. Mas, os militares tinham a força bruta, em doses descomunais. E, infelizmente, a vida real é bem diferente dos episódios bíblicos. Quase sempre é Golias quem vence Davi.
Ah, uma curiosidade: há um Colégio de São Paulo que atua exatamente na linha que eu proponho, priorizando a formação do cidadão, do líder e do dirigente da sociedade, não do mero profissional. E não tem nada de esquerdista. Pelo contrário, é rotariano. Trata-se do Colégio Rio Branco, no bairro de Higienópolis.

CAMILAPor que uma forma de vida mais simples e mais prazeirosa, considerando o homem como ser social, são engolidas por outra que vai contra a essência do ser humano? Não é uma involução da sociedade?

Sua pergunta é ótima… mas requer uma resposta que não cabe nos limites deste papo. Se você quiser enfrentar o desafio, eu lhe recomendaria livros como A Ideologia da Sociedade Industrial e Eros e Civilização, de Herbert Marcuse; e Morte Contra Vida, de Norman O. Brown.
De uma forma extremamente simplificada, eu colocaria que a desigualdade e o espírito de competição levaram os homens a realizarem os esforços necessários para o desenvolvimento das forças produtivas. O privilégio, o ter mais do que os outros, era a cenoura que se colocava na frente dos asnos para fazê-los andar para a frente.
Até onde isso fazia sentido? Até que o homem, em sua escalada para o progresso, atravessasse a barreira da necessidade. Ou seja, até que desenvolvesse a tal ponto a capacidade produtiva, que se tornasse capaz de produzir o suficiente para suprir as necessidades básicas de todos os homens do planeta.
Chegado esse ponto, a desigualdade não teria mais papel, tornando-se inútil e odiosa. Havendo riquezas suficientes, estavam criadas as premissas para um mundo solidário e justo.
No entanto, o capitalismo organizou-se para impedir que a produção se direcionasse para o socialmente útil, que as riquezas fossem divididas equitativamente, que os homens trocassem a competição pela cooperação, que a jornada de trabalho fosse reduzida e os cidadãos tivessem mais tempo para desenvolverem-se como seres humanos.
Isto vem desde o século passado: queimas de produtos para evitar a queda de preços, desenvolvimento de burocracias e atividades parasitárias, belicismo (a produção de armamentos e munição é uma forma de mobilizar trabalho sem trazer contribuição nenhuma às pessoas).
Se se utilizassem os esforços para produzir o que é necessário e distribui-lo equitativamente, todos viveríamos infinitamente melhor. Mas, os esforços foram desviados para outras finalidades e o básico continuo faltando para boa parte da humanidade.
Assim, como nem todos têm tudo de que necessitam, continua havendo o estímulo para alguns tentarem ter mais do que os outros; e continua havendo uma fatia da produção voltada para a ostentação e o luxo, o suntuoso e o desnecessário.
E a indústria cultural, cada vez mais articulada para a manipulação científica das consciências, cumpre exatamente o papel de incutir nos seus públicos a noção de que esse mundo degradado é o único possível, e de que quem propõe alternativas não tem senso de realidade.

PSICOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

Tal qual a gripe suína, a praga das telenovelas também nos chegou do México, com “O Direito de Nascer” (1964)

Neste sábado, passei por uma experiência nova na minha vida: fiz um curso para poder batizar minha filhinha.

Foi pitoresco. Primeiramente, por terem dado uma roupagem nova ao que eu pensava que seria apenas uma tediosa aula de catolicismo. Houve debate, uso de power-point, etc.

Achei meio decepcionante que o padre não desse o ar de sua graça, deixando a incumbência para os voluntários da pastoral respectiva. Meio assim como se fôssemos segunda divisão, só merecendo atenções especiais no próprio dia do batismo.

Mas, a senhora que conduziu os trabalhos levava jeito para a coisa. O treinamento de professora ajudou.

Fiquei pasmo ao perceber que, depois de pedir aos participantes, umas 30 pessoas, que falassem um pouco sobre si mesmos, ela começou a chamar cada um para o diálogo… pelo nome!

Em situações análogas, eu seguramente não consigo associar o nome à imagem de 10 pessoas. Sou sempre obrigado a disfarçar, pois sei que cada um acredita ter importância suficiente para merecer um desempenho melhor da minha memória.

Mas, são facetas que nos acompanham desde o início. No primário, já levava mais tempo que os demais para memorizar o nome dos colegas. Talvez como contrapartida por ter memória excelente em outros departamentos.

DA PIEGUICE MEXICANA À LAVAGEM CEREBRAL DA GLOBO – Debateu-se o que está errado no mundo de hoje e o que fazer para melhorá-lo, com cada um tendo oportunidade de proferir frases muito originais sobre Deus, amor, paz, família, etc.

Parece que tudo mudará da água para o vinho se nos comportarmos melhor nas esferas social e familiar.

Foram citadas situações de telenovelas para ilustrar algumas ponderações. Eu, apaixonado pelo cinema desde as matinês do pulgueiro do meu bairro, nunca as suportei.

Quando estreou a chatíssima O Direito de Nascer, importada do México pela então TV Tupi no sintomático ano de 1964, vi metade do primeiro capítulo e concluí: é melodrama arrastado. Desde então, e já lá se vão quatro décadas e meia, nunca precisei alterar minha opinião quanto ao ritmo arrastado e à mediocridade intrínseca (só deixou, em parte, de ser melodrama).

É claro que, visitando pessoas, tive de suportar o que assistiam, então nunca perdi totalmente o contato com as novelas. E também nunca deixei de ser acometido por bocejos, que, por educação, disfarço o melhor que posso.

Pude perceber que, quando o filão passou a ser dominado pela rede Globo, as novelas redefiniram o seu papel: saíram dos clichês melosos/folhetinescos apropriados para pessoas simplórias (escola mexicana) e viraram um reforço da auto-estima para quem vive existências insípidas.

Ou seja, mostram personagens comuns fazendo coisas comuns e vivendo situações comuns, como se isso fosse importante.

Deixaram de destacar o inusitado, o aventureiresco, o genial, aquilo que são e fazem os indivíduos superiores.

Passaram a ser um mero espelho dos telespectadores. Para que estes fiquem iludidos, achando que sua existência banal e insípida não é tão banal e insípida assim. Que a poça de água parada em que o capitalismo os condena a viver é, pelo contrário, um mar grandioso.

TRABALHO ALIENADO, O DOMÍNIO DE SATÃ? – Voltando ao catecismo modernizado de ontem, chamou-me também a atenção que ninguém, absolutamente ninguém, falou sobre aperfeiçoar-se e melhorar como ser humano em sua esfera profissional.

Será que não têm consciência de que a sociedade em que vivem os obriga a utilizarem suas piores aptidões na luta pela sobrevivência?

Ou, o que é mais provável, já não conservam a mínima ilusão quanto a isto, admitindo que, na caça à grana, vale tudo e tudo se justifica?

É uma das acusações mais terríveis que Marx lançava ao capitalismo: de ter aniquilado a possibilidade do trabalhador realizar-se com seu trabalho.

O artesão medieval enxergava-se naquilo que produzia. Seu talento e sua sensibilidade estavam incorporados aos frutos do seu labor. Cada um deles tinha uma maneira própria, diferente, de fazer as mesmas coisas (móveis, objetos).

Essa mentalidade sobreviveu durante as primeiras etapas do capitalismo, pelo menos fora do ambiente das grandes fábricas — nas quais a produção em série já tornava o proletário totalmente alienado do produto final, em que nada via de realmente seu. O grande cineasta René Clair, depois plagiado por Charlie Chaplin (Tempos Modernos, 1936), fez uma crítica devastadora das linhas de montagem, em A Nós, A liberdade (1931).

Lembro-me do meu avô, pequeno fabricante de móveis, depois de um dia estafante, recusando uma mesinha de jogo já embalada e pronta para zarpar. Quando terminava o expediente dos funcionários, o dele continuava, saindo com sua kombi para fazer as entregas.

Mesmo assim, não aceitou que a mercadoria seguisse com um risquinho que provavelmente passaria despercebido ao cliente. Disse, aludindo ao fato de que a empresa levava o sobrenome da família: “Esta mesa tem meu nome. E meu nome não circula riscado por aí”.

Ahora, no más. São raríssimos os profissionais que têm orgulho e verdadeiro zelo em relação ao que fazem. A imensa maioria só quer ganhar logo a grana para poder ir fazer aquilo de que realmente gosta. O trabalho, mais do que nunca, virou castigo bíblico, a canga que se suporta para sobreviver.

Ou, simplificando o que disse o filósofo Norman O. Brown: nos desempenhos profissionais, pertencemos inteiramente ao diabo (para ele, sinônimo do capitalismo).

O que ainda temos de Deus dentro de nós, só pode aflorar, esporadicamente, nas esferas social, familiar e amorosa.

CAPITALISMO, O ANJO EXTERMINADOR

Uma marca da Geração 1968 foi enveredar pela psicanálise, para entender melhor a forma de dominação imposta pelo capitalismo avançado.

Herbert Marcuse, principalmente, colocou a sociedade pós-industrial no divã, daí derivando conclusões utilíssimas para os movimentos revolucionários… que logo as deixariam de lado, voltando celeremente às crenças e posturas antigas, como se quisessem confirmar a crítica disparada por Caetano Veloso contra os energúmenos que vaiavam É Proibido Proibir: “Vocês vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!”.

O certo é que caiu em desuso falar na lógica perversa do capitalismo, denunciar suas tendências autofágicas e atribuir-lhe (como o filósofo Norman O. Brown fazia) o papel de anjo exterminador da espécie humana.

Mas, a nova crise global do capitalismo veio ao encontro das teses de Marcuse e O. Brown, num aspecto importantíssimo: o comportamento desatinado de cada empresa, tentando salvar-se sozinha e, com isto, contribuindo para o naufrágio geral.

Noutro dia mesmo abordei o comportamento ignóbil dos bancos que, beneficiados por medidas governamentais que lhes proporcionaram recursos para irrigar a economia, preferiram, isto sim, jogar a grana extra em seus próprios fundos de proteção contra os prejuízos que a inadimplência dos clientes lhes causará. Ou seja, aprofundam a recessão para reduzirem suas próprias perdas com a recessão… e que se danem o Brasil e os brasileiros!

A mesma insensatez se constata em três notícias desta semana:

  • A fusão entre os laboratórios farmacêuticos Merck e Schering-Plough, recém-anunciada, deverá resultar na demissão de 15% do quadro de funcionários (16.620 pessoas) para a formação da nova empresa. Um comunicado conjunto informa que “a prioridade será manter os melhores talentos de ambas” (ai dos demais!). Tanto a Merck como a Schering-Plough vão congelar suas contratações imediatamente.
  • O grupo petroquímico americano Dow Chemical anunciou que vai completar a aquisição da rival Rohm and Haas. A estimativa é que a compra provocará o corte de mais 3.500 postos de trabalho, a somarem-se aos 6.500 antes anunciados pelos dois grupos.
  • As montadoras brasileiras, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, extinguiram 1.786 postos de trabalho em fevereiro/2009, embora a produção tenha aumentado 9,2% em relação ao mês anterior. O incentivo governamental para manter aquecido o mercado automobilístico não afugentou o passaralho. As vagas eliminadas nos últimos quatro meses já somam 7.769.

Conclusão óbvia: as corporações não estão nem aí para os esforços de superação da crise. Querem é posicionar-se para o day after, pretendendo sair melhor da recessão do que estavam ao nela entrarem. E atiram insensivelmente seres humanos na rua da amargura, quando mais difícil será conseguirem nova colocação.

E se a recessão não terminar, mas sim aprofundar-se cada vez mais? De que lhes adiantará essa faina repulsiva para ocupar os melhores camarotes, caso o navio afunde?

Tal comportamento certamente se repetirá quando a humanidade estiver enfrentando o gravíssimo desafio das alterações climáticas e outros que virão por aí.

Daí a minha convicção de que, com o salve-se quem puder! capitalista, ninguém se salvará.

Os seres humanos terão de redescobrir a solidariedade e a comunhão de esforços, no momento mais crítico e da pior maneira possível, se quiserem sobreviver como espécie.

APOCALYPSE NOW

O Banco Mundial fez uma vaquinha entre dez dos países mais ricos do planeta, inclusive os Estados Unidos, mas conseguiu arrecadar apenas US$ 6,1 bilhões para ajudar as nações em desenvolvimento a combaterem o aquecimento global.

Os EUA sozinhos pretendem queimar US$ 700 bilhões para socorrerem o setor financeiro cujas operações fraudulentas e irresponsáveis podem causar uma recessão planetária. Só não o fizeram até agora por causa da politicalha no Congresso. Mas, com certeza, acabarão fazendo.

Os números são eloquentes: a salvação da economia importa muito mais do que a salvação da humanidade.

O filósofo Norman O. Brown, num livro interessantíssimo (Life Against Death, 1959), teorizou que o capitalismo encarna atualmente o instinto de morte, trabalhando em favor da destruição da humanidade. Deveria ser lido e relido à exaustão.

Cada vez mais acredito que não sobreviveremos às terríveis provações que estão chegando caso continuemos delegando a responsabilidade de salvar-nos aos governos.

Se a ficha não cair rapidinho para os passageiros desta nau desgovernada, poderá não haver século 22.

O piloto sumiu e a cabine de comando está vazia; ou nos tornamos os tripulantes, ou viraremos pó. É simples assim.