Herbert Marcuse

MEMÓRIAS DE UM CRÍTICO ACIDENTAL

Durante uns cinco anos, entre 1979 e 1984, atuei como crítico de cinema e de música em veículos de pouca expressão.
Mesmo ganhando pouco, é a fase da minha carreira profissional que me deixou as melhores recordações. Até como compensação, tinha liberdade para escrever o que queria, do jeito que queria. Repetindo o Jim Capaldi, “oh, how we danced!”…
Espelhava-me em pesos-pesados como Paulo Francis, Luiz Carlos Maciel e Rubem Biáfora, com quem aprendera a apreciar a arte com olhar independente, em vez de ser mais um a fazer oba-oba para os artistas e obras de que todo mundo gostava.
Isto me colocava na contramão de uma crítica que começava a funcionar apenas como fornecedora de subsídios para consumo, oferecendo aos leitores uma bula para eles decidirem se valia a pena ver determinado filme, comprar certo disco. Cheguei a escrever que se tratava, isto sim, de uma burla que se cometia com a arte.
A ficha me começou a cair quando assisti numa cabine a Alien, o Oitavo Passageiro, de Riddley Scott, ao lado dos maiores nomes da critica cinematográfica de São Paulo.
À saída, os medalhões travaram verdadeira competição para ver quem se lembrava de mais filmes antigos dos quais Scott chupara trechos. Demonstraram claramente ter considerado Alien uma colcha-de-retalhos e um lixo.
Qual não foi minha surpresa ao constatar, dias depois, que todos eles haviam feito média com o filme, permanecendo confortavelmente em cima do muro, nem sim, nem não, muito pelo contrário.
Perdi o pouco de respeito que ainda me inspiravam.
O ‘PROMÍSCUO’ ZEFIRELLI  
Outro episódio na mesma linha foi o ocorrido quando da coletiva que o diretor italiano Franco Zefirelli concedeu, ao lançar em São Paulo O Campeão. Antipatizei com o filme por ser um reforço dos valores familiares, uma guinada na direção do conservadorismo, depois de toda a efervescência da geração das flores.
Além disto, Zefirelli acabava de ser contratado a peso de ouro para montar uma ópera no Rio de Janeiro, embora, garantissem os expertos, houvesse muitos brasileiros que poderiam desempenhar melhor a função, recebendo bem menos.
Então, combinei com o colega do Diário Popular que, durante a entrevistas, jogaríamos o máximo de cascas de banana no caminho de Zefirelli.
Dito e feito. O italiano escorregou feio, chegando até a admitir que, ao contrário do moralismo piegas do seu filme, ele próprio era “promíscuo”. E foi além no ridículo involuntário: “Mas, se todos fossem como eu, não existiria civilização”.
Zefirelli assumiu que era “promíscuo”…
Em nossas matérias, não perdemos a oportunidade de espinafrar o conspícuo remanescente de Sodoma e Gomorra — que, ademais, reconhecera não conceber os filmes seguindo suas convicções, mas sim com o calculismo de um homem de marketing.
Ou seja, ele procurava antecipar-se aos sentimentos e modismos que estariam em voga quando a película fosse lançada. É o que se depreende desta afirmação: “Não fiz Irmão Sol, Irmã Lua por ser franciscano, mas sim por ter percebido que a juventude estava entrando nessa onda e, logo, muita gente a seguiria…”
Mas, só nós dois registramos os maus momentos de Zefirelli. Os críticos realmente influentes omitiram suas bobagens e trataram de apenas levantar-lhe a bola, mantendo-se nas boas graças do sistema.
Eu, pelo contrário, nunca conciliei. Não hesitei em qualificar de irrelevante o Superman de 1978, com Marlon Brando. Aí, um diretor do poderoso Circuito Serrador fez questão de me entregar pessoalmente a permanente para ter livre acesso aos cinemas da empresa… com direito a um sermão sobre haver afastado espectadores do seu grande lançamento daquele ano. Não dei a mínima.
Já as farpas contra o O Franco-Atirador, de Michael Cimino, serviram para azedar também meu relacionamento com os mandachuvas do principal veículo em que escrevia, o semanário Fim-de-Semana.
Eles eram todos altos funcionários do jornal O Estado de S. Paulo (dizia-se até que não passaria de um veículo criado para descarregar impostos da empresa, apresentando perdas extremamente superfaturadas…) e, como tais, reacionários até a medula.
O franco-atirador: arte ou lavagem cerebral?
Ora, O Franco-Atirador, agraciado com vários Oscar, apresentava o conflito vietnamita na ótica calhorda de lamentar os traumas sofridos pelos soldados estadunidenses em contato com a barbárie dos asiáticos.
Ou seja, além de despejarem toneladas de napalm nos coitados, os estadunidenses ainda os satanizavam. Parecia a velha piada do brutamontes se queixando ao fracote de que havia machucado a mão ao esmurrar a cara dele.
Perdi aquela tribuna e não lamentei. “Canto eu vendo, não vendo é opinião”, dizia uma velha música da era dos festivais.
INTIMIDAÇÃO DE CRÍTICOS  
Não pude, entretanto, deixar de lamentar o fato de haver indiretamente causado a demissão do crítico e cineasta Jairo Ferreira da Folha de S. Paulo, em outro episódio.
Naquele tempo, a nata dos cineastas engajados estava na órbita da estatal Embrafilme, cuja assessoria de imprensa passou a fazer uma espécie de lobby para intimidar críticos: cada vez que um deles lançava seu novo filme, todos os outros escreviam elogios extremados e desancavam de forma igualmente extremada quem ousasse discordar da excelência da película lançada.
Isto tudo vinha em luxuosos press-kits, cuidadosamente produzidos para embasbacar, amedrontar e, finalmente, cooptar os críticos.
O amigo Jairo Ferreira foi na minha cola e se deu mal…
Observei o fenômeno uma, duas vezes. Na terceira, fiz uma veemente denúncia. Contei como funcionava o esquema e escrevi que, mesmo correndo o risco de me indispor com os Glauberes e Nelsons Pereiras, iria discordar: aquele filme não prestava.
O amigo Jairo leu, gostou e resolveu bater na mesmíssima tecla.
Só que a Embrafilme despejava rios de dinheiro na Folha, com seus anúncios enormes e caríssimos. Então, por coincidência, uma semana depois ele foi demitido, a pretexto de que uma crítica sua, escrita para ser publicada no sábado, saíra só na segunda-feira, quando o filme já não estava em cartaz.
A editora da Ilustrada disse que não tinha sido avisada da urgência. Ele me garantiu que a alertara.
PARA ALÉM DA CRÍTICA DOMESTICADA  
De resto, a contribuição maior que eu tentei dar foi propor uma crítica que não se limitasse aos mexericos de estúdios a que o Rubens Ewald Filho conferia tanta importância (quem namorou com quem durante as filmagens, etc.) ou à abordagem puramente técnica.
Queria que o cinema fosse tratado como algo maior. Que os temas levantados pelos filmes também fossem discutidos e aprofundados, não apenas a maneira como estavam sendo apresentados. Que se confrontasse, p. ex., o filme e a obra literária do qual ele derivava. Ou o filme e o acontecimento histórico que ele retratava.
Ou o cinema nos desafia, ou não é nada.
Seria mais trabalhoso para os críticos mergulharem fundo em cada filme? Claro que seria. Mas, só assim daríamos aos espectadores subsídios para fluírem a arte em sua plenitude, como algo capaz de modificar e melhorar o ser humano.
A avaliação era do filósofo Herbert Marcuse, meu autor de cabeceira naquele tempo: a sociedade pós-industrial tenta domesticar a arte, transformando-a em entretenimento inócuo. Mas, a verdadeira arte será sempre um contraponto à realidade, servindo de ponte entre o que é e o que poderia ser. Cabe aos combatentes da utopia impedir que ela morra.
É claro que meu trabalho acabou sendo ignorado pela grande imprensa; e que, ao propor um enfoque diametralmente oposto ao que convinha ao sistema, queimei minhas chances de estabelecer-me como crítico. Acabei não conseguindo sequer sobreviver nessa área, sendo obrigado a trocá-la pelo – argh! – jornalismo econômico.
Mas, como nunca tive compromisso com o sucesso, faria tudo de novo. Afinal, disse Isaac Deutscher, há vitórias que nos aviltam e derrotas que nos dignificam.
Sendo essas as únicas opções, preferirei sempre as segundas.

O PRODUTO DESEJADO PELOS ELEITORES DE SAMPA: UM NOVO CONSERVADOR

O jornalista Paulo Francis estava certíssimo ao qualificar a sociedade de consumo de  inferno pamonha, ou  bocó. Acertou na mosca.

Até a segunda metade do século passado, as criticadas elites procuravam, pelo menos, tornar o cidadão comum melhor do que era. Podia-se, claro, discordar do tipo de melhora que tinham em mente, mas não do conceito de que nossa jornada na Terra deva ser evolutiva. Não nascemos prontos, construímo-nos ao longo da vida.

A sociedade de consumo modificou para pior, bem pior, tal equação.

Os homens deixaram de ser tratados como cidadãos. Passaram a ser encarados, isto sim, como  consumidores. Não são mais  gente, são  mercado.

Então, não se questionam mais seus desejos. Se alguém estiver querendo comprar, haverá alguém disposto a vender. Literalmente  tudo, seja às escâncaras ou por baixo do pano.

Em termos psicológicos, isto significa, simplesmente, que as pessoas são mantidas numa eterna infância. Não superam mais o narcisismo inicial. Não encontram mais a justa medida entre o que querem e o que podem. Não aprendem que sua felicidade depende da felicidade dos outros, que sua satisfação e seu prazer serão muito mais completos se compartilhados.

Ao mesmo tempo, os objetos de consumo pelos quais tanto anseiam nunca são plenamente satisfatórios. E as vítimas da engrenagem infernal do sistema passam a vida inteira correndo atrás do que jamais obtêm, adquirindo o que não precisam e trabalhando sofregamente sem que haja justificativa real para tanto estresse e tanto enfarte.

Este é o motivo maior do declínio da esquerda nas últimas décadas. O que oferecíamos era uma perspectiva de sociedade melhor, na qual as pessoas se tornariam melhores: era o ideal do homem novo. 

Os consumistas passam a vida apaixonados pelo próprio umbigo e querendo ter o mundo como espelho, pois anseiam pateticamente por verem-se nele refletidos. Não o pretendem melhorar, o que gostariam é de melhorar a própria posição numa sociedade desumana e injusta. Vai daí que hoje são bem poucos os que se dispõem a dedicar a vida aos grandes ideais.

Há meio século a Escola de Frankfurt previu que chegaríamos exatamente a este  inferno pamonha, no qual os indivíduos perderiam o controle sobre suas próprias vidas, sem nem mesmo atinarem com os motivos de sua infelicidade, mesmerizadas pela influência atordoante da indústria cultural.

O que fazer? –indagaria Lênin.

Herbert Marcuse apostava que tal manipulação cientificamente implementada seria capaz de evitar que a maioria formasse uma consciência crítica, mas não que acontecessem, em determinadas circuntâncias, explosões espontâneas de revolta. Não dá para represar-se tudo. E as contradições insolúveis do capitalismo estão aí para fornecerem os estopins de tais explosões espontâneas; caso da crise econômica global.

Como nós, da esquerda, devemos nos comportar nos  intervalos  entre tais explosões espontâneas, nas marés vazantes, quando as massas não estiverem dispostas a nos acompanharem em voos mais altos?

É uma questão crucial.

Podemos manter a coerência com nossos ideais e, mesmo não influindo decisivamente nos acontecimentos políticos, continuarmos contestando as injustiças sociais, as formas mais sofisticadas de exploração do homem pelo homem que hoje predominam, a desumanização que o capitalismo promove e barbárie à qual nos conduz. Assim, estaremos nos qualificando para liderar contingentes mais amplos quando estes acordarem do coma induzido pelo sistema.

Há os que preferem combater o monstro com as armas do monstro, acreditando que não se tornarão monstruosos. No entanto, acabam é igualando-se ao que combatem. Não mudam o mundo; são mudados pelo mundo.

CANDIDATURAS IDEOLÓGICAS x CANDIDATURAS DE CONSUMO

Se o que os eleitores
queriam era um monstro…

É chocante, p. ex., vermos as eleições se tornarem uma disputa de quem melhor se encaixa no perfil de candidato identificado exatamente pelos métodos que as empresas utilizam para avaliar a viabilidade de  produtos: pesquisas qualitativas e as inferências dela extraídas pelos analistas.

Na eleição paulistana, o  produto  assim determinado como o de maior aceitação potencial no mercado seria um candidato ao mesmo tempo  novo  e  conservador.

Isto explica o empenho do Lula em impor o Fernando Haddad, que nem de longe tem a  cara do PT, mas se encaixa na imagem do  novo.

O PMDB também apostou numa figura de galã de telenovela, Gabriel Chalita.

O PSDB pensou que desse para maquilar o (hoje) conservador José Serra, fazendo-o parecer bem mais novo do que é. Botou-o para pedalar, para subir em skates, para bater pênaltis, etc., mas a mágica besta não funcionou: ele quase caiu do skate,  isolou  o sapato e mergulhou o ridículo, tornando-se o alívio cômico da campanha na internet.

Como já tinha a preferência  de cabresto  dos evangélicos zumbificados e dos videotas acostumados a vê-lo posar de paladino dos consumidores, o  novo conservador  para o qual o eleitorado está pendendo é Celso Russomanno.

Pior: com parcela substancial de votos tradicionalmente petistas.

Então, é hora de o PT fazer uma profunda reflexão sobre se compensou abandonar as candidaturas ideológicas e aderir às  candidaturas de consumo.

…encontraram:  esta imagem
atesta o acerto da escolha.

Antigamente, quem votava no PT era por acreditar nos ideais e posturas do PT. O partido era o fator decisivo.

Agora, o candidato petista é propagandeado da mesmíssima forma e faz as mesmíssimas promessas mirabolantes dos centristas, direitistas e dos meros fisiológicos. Não tem mais sequer os cabos eleitorais voluntários, precisa contratar tarefeiros.

Então, quando a figura não convence, como o insosso Haddad, o atual eleitorado petista migra insensivelmente para um antípoda ideológico como o Russomanno.

E, se um dia houver crise grave, nestes tristes trópicos em que o golpismo nunca se torna prática definitivamente sepultada, jamais lutará pelo governante que escolheu.

O grande Plínio de Arruda Sampaio certa vez colocou o dedo na ferida: valeu a pena o PT ter chegado à Presidência com o compromisso de manter intocada a política econômica neoliberal, ou seja, limitado a gerenciar os negócios capitalistas como um FHC o faria?

Da mesma forma, não seria melhor, vencendo ou perdendo a eleição, educar o eleitorado, tentando convencê-lo de que precisa, isto sim, de um  contestador, pouco importando se novo ou velho?  Pois, prostrando-nos desta forma aos humores momentâneos das massas, o que faremos quando a maré for fascista? Escolheremos um candidato que seja clone do Mussolini?!

Há dois milênios, Jesus Cristo já dizia que não: “O que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” (Mateus, 26:16).

CONFIRMADO: A CPI DO CACHOEIRA É CASCATA

Notícia do dia: “Após acordo entre governo e oposição, a CPI do Cachoeira engavetou pedidos para investigar tanto a empreiteira Delta como governadores e parlamentares acusados de envolvimento com Carlinhos Cachoeira.”

O teatrólogo Luís Alberto de Abreu, meu amigo há quatro décadas, diz que os participantes da política oficial fazem pôse de direitistas, centristas ou esquerdistas, mas isto é meramente para consumo externo. Entre eles, estão sempre unidos na defesa dos seus privilégios imorais e maracutaias escandalosas. Sua verdadeira prioridade é manterem-se no lugar. Seus verdadeiros inimigos são os que tentam tomar-lhes o lugar.

Foi o que pensei num dia destes, quando ocorreu-me de estar esperando a chegada de um companheiro à Assembléia Legislativa; sem coisa melhor para fazer, fui matar tempo assistindo à sessão.

Meia dúzia de deputados presentes, numa tarde de dia útil.

Vem um direitista qualquer e pede ao presidente que inclua nas atas uma relação de vítimas da esquerda. Acaba o pronunciamento e some.

Vem um esquerdista e pede ao presidente que inclua nas atas uma relação de vítimas da direita. Depois fala sobre outras coisas. 

Ninguém pede aparte, ninguém mostra desagrado, ninguém liga. Nada além de um ritual burocraticamente cumprido, sem a mínima emoção. Já vi enterros mais animados.

Ambos terão serviço para mostrar a seus eleitores, na próxima temporada de caça ao voto: “Olha as verdades que atirei na cara do inimigo!”.

Como a coisa se avacalhou tanto, com os Poderes da Nação sendo reduzidos ao espetáculo grotesco que hoje nos oferecem o Executivo, Legislativo e Judiciário?

Marcuse explica: com a imposição avassaladora do poder econômico sobre os três. Estão satelizados. Foram domesticados.

Daí minha irrisão cada vez que se fala em CPI para apurar algum dos infinitos esquemas de corrupção existentes.

Num bom filme que pouca gente notou, Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-Traz (d. Paulo Gil Soares, 1967) a prosperidade fajuta que a descoberta do petróleo trouxe a um vilarejo longínquo não ilude a um menino. Em pleno banquete, ele não consegue mastigar a comida, vistosa mas falsa. E grita: “É tudo mentira! É tudo mentira!”. Num átimo, toda a riqueza recente desaparece e os cidadãos se descobrem vestidos com as roupas velhas, tão miseráveis como antes.

Único espectador da sessão do Legislativo paulista –havia uns dez alunos do ensino médio que estavam pagando mico e abriram largos  sorrisos quando puderam ir embora–, também tive vontade de gritar: “É tudo mentira! É tudo mentira!”.

Seria inútil, pois vaias e protestos não mais chegam a seus ouvidos. A platéia foi isolada do palco por um enorme vidro, deixando a trupe mambembe totalmente a salvo da insatisfação do público.

E, como peixes num aquário, eles continuam executando movimentos totalmente vãos para todos, exceto para eles mesmos.

ATÉ QUANDO?!

A indústria cultural se tornou exatamente o que, há mais de meio século, os pensadores da Escola de Frankfurt alertaram que se tornaria: uma gigantesca máquina de desinformação e mesmerização dos seres humanos, no sentido de tangê-los ao conformismo e evitar que questionem a organização da sociedade nos moldes capitalistas. Não existe sequer espaço para as utopias na mente dos videotas, pois ele está totalmente preenchido pelas banalidades que a mídia martela dia e noite.

A internet até permite que um cidadão consciente acesse notícias com verdadeira relevância, mas a grande imprensa pinça, para destacar, quase sempre as que realmente não importam nem levam a lugar nenhum (parafraseando um verso do saudoso Raulzito). E são estas que fazem a cabeça da  maioria bovinizada.

Vide, p. ex., este despacho de agora há pouco da Agência France Press, que certamente será pouquíssimo aproveitado no noticiário da grande imprensa, pois a compaixão e a solidariedade não convêm ao sistema:

As medidas de austeridade aplicadas pelo governo português ameaçam os direitos humanos e afetaram de maneira ‘desproporcional’ os jovens, as pessoas idosas e os ciganos, considerou o comissário europeu de Direitos Humanos após uma visita a Portugal.

‘A austeridade orçamentária afetou de maneira desproporcional os direitos dos grupos mais vulneráveis, em particular os jovens, as pessoas idosas e os ciganos’, concluiu Nils Muiznieks em um comunicado após uma visita de três dias a Portugal.

‘O que é essencial é colocar os direitos humanos no centro da estratégia econômica, sobretudo em um contexto de austeridade, para não esquecer dos mais vulneráveis’, disse o comissário à AFP.

‘É preciso mudar a política se vemos que seu efeito nos grupos mais fracos é desproporcional’, acrescentou.

Enfraquecido pela crise da dívida, Portugal obteve em maio de 2011 uma ajuda da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional de € 78 bilhões (cerca de US$ 101 bilhões).

Em troca, deve aplicar uma política rigorosa, o que provocou um aumento da taxa de desemprego, que supera atualmente 15% da população economicamente ativa.

‘Incentivei o governo português a tomar medidas para evitar o reaparecimento da exploração infantil’, citou o comissário, que também se preocupou com o destino de entre 40 mil e 60 mil ciganos que vivem em Portugal e que são, muitas vezes, discriminados.

Assim caminha a desumanidade.

E, como nos tempos nefandos da ditadura militar, trago sempre comigo e tento sempre fazer ecoar a indignação dos justos, “um grito que cresce/ cada vez mais na garganta,/ cravando seu travo triste/ na verdade do meu canto” (Thiago de Mello).

Vivo para o dia em que o cidadão comum afinal compreenderá a verdade tão bem enunciada por Glauber Rocha em Terra em Transe, pela boca do poeta Paulo Martins (Jardel Filho):

Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta festa de bandeiras com guerra e Cristo na mesma posição! Assim não é possível, a impotência da fé, a ingenuidade da fé.

Somos infinita, eternamente filhos das trevas, da inquisição e da conversão! E somos infinita e eternamente filhos do medo, da sangria no corpo do nosso irmão!

E não assumimos a nossa violência, não assumimos as nossas idéias, como o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos o nosso passado, tolo, raquítico passado, de preguiças e de preces. Uma paisagem, um som sobre almas indolentes. Essas indolentes raças da servidão a Deus e aos senhores. Uma passiva fraqueza típica dos indolentes.

Não é possível acreditar que tudo isso seja verdade! Até quando suportaremos? Até quando, além da fé e da esperança, suportaremos? Até quando, além da paciência, do amor, suportaremos? Até quando além da inconsciência do medo, além da nossa infância e da nossa adolescência suportaremos?

ATÉ QUANDO?!

O CAPITALISMO NOS OBRIGA A FLERTAR COM A MORTE

É de Norman O. Brown a tese de que o capitalismo, em sua fase terminal, tornou-se agente da destruição da humanidade.

A teorização dele em Vida contra morte (1959) é tão complexa que os resumos se tornam inevitavelmente reducionistas e empobrecedores. É melhor mesmo enfrentarmos a obra, uma das poucas que trazem reais subsídios à compreensão do nosso tempo… mesmo meio século depois!
O certo é que, indo além do óbvio ululante de que o capitalismo já esgotou sua função histórica e está prenhe de revolução, O. Brown dissecou com ferramentas freudianas, exaustivamente, as características que o vampiro assume em sua sobrevida artificial, concluindo que ele cataliza as energias destrutivas dos homens, voltando-as contra eles.
Fantasioso? Se pensarmos na destruição e no caos que estão à nossa espera nas próximas décadas, decorrentes das agressões insensatas ao meio ambiente, perceberemos que ele foi, isto sim, profético.
Vide, p. ex., esta notícia da Agência Brasil, assinada pela repórter Renata Giraldi, que aproveitou despachos da BBC e de outras agências internacionais:
O mundo está ‘perigosamente’ despreparado para lidar com futuros desastres naturais, advertiu a agência de desenvolvimento internacional da Grã-Bretanha. A agência britânica informou que o despreparo é causado pela ausência de contribuição dos países ricos ao fundo de emergência mundial.
O fundo de emergência é uma iniciativa da Organização das Nações Unidas, criada como resposta a tsunamis, com o objetivo de auxiliar regiões afetadas por desastres naturais.
De acordo com informações de funcionários da ONU, o fundo emergencial sofre com um déficit equivalente a R$ 130,5 milhões para 2012.
A escassez do fundo, segundo especialistas, tem relação direta com a série de tragédias naturais que ocorreram ao longo de 2011, como o tsunami seguido por terremoto no Japão; a sequência de tremores de terra na Nova Zelândia, enchentes no Paquistão e nas Filipinas e fome no Chifre da África.
Ontem (26) peritos japoneses e estrangeiros concluíram que medidas de precaução adequadas poderiam ter evitado os acidentes radioativos, na Usina de Fukushima Daiichi, no Nordeste do Japão, em 11 de março deste ano…
…Segundo eles, houve falhas no que se refere às influências de terremotos e tsunamis na estrutura física da usina.

Resumo da opereta: o lucro é a prioridade máxima, dane-se a nossa sobrevivência! A mesma lógica   perversa se constata numa infinidade de outras ocorrências. O capitalismo nos obriga a flertar com a morte.

O pensador nascido no México, filho de um casal estadunidense, apostava na  ressurreição dos corpos, na liberação do erotismo para derrotarmos a repressão e a morte –um pouco na linha de Wilhelm Reich, só que com argumentação bem mais sofisticada.
Contudo, deve ser também considerada a tese de Herbert Marcuse sobre a  dessublimação repressiva  sob o capitalismo, ou seja, uma dessublimação meia-boca, que não extingue a repressão.
É como pode ser considerada a atual banalização do sexo como descarga física, sem real envolvimento amoroso.
Ou seja, o sexo casual, coisificado, em que os parceiros usam um ao outro para obterem seu prazer egoísta, sem doação, sem verdadeiramente se complementarem.
Este acaba reforçando a repressão, ao deslocá-la para o outro oposto: em lugar do amor com sexo travado de outrora, o sexo animalizado de hoje, dissociado do amor.
Já encontrei moças que, nuas e oferecidas, recusavam-se a ser beijadas na boca, como antes era atitude comum das prostitutas. Só faltava repetirem a frase que Hollywood costuma atribuir aos gangstêres: “Não é pessoal, são só negócios”…
Neste sentido, acredito em O. Brown: a plenitude amorosa –em que o amor físico e espiritual são uma e a mesma coisa, com a identidade dos parceiros se dissolvendo num conjunto maior, quando um mais um soma bem mais do que dois– continua incompatível com o capitalismo.

Transgride-o e o transcende, empurrando os domesticados seres humanos para uma convivência amorosa/harmoniosa com o(a) outro(a) –e, por extensão do mesmo clima, com todos os demais  e com a natureza.

Impelindo-os, enfim, à aventura da libertação.

CATÁSTROFE AMBIENTAL SERÁ A CRISE DEFINITIVA DO CAPITALISMO?

A grande crise do capitalismo virá quando chegar a catástrofe ambiental. Penso que haverá desastres cada vez mais frequentes e profundos. Haverá um momento de virada na história, uma espécie de barbárie ou alguma forma de regulação global dos mercados. (…)

Não sei quando isso acontecerá, mas essa será a crise de fundo do capitalismo: destruir as condições de sua própria existência, destruindo o ambiente, modificando condições que nunca deveriam ter sido modificadas.

A previsão é de Michael Burawoy, presidente da Associação Internacional de Sociologia, em interessante entrevista à repórter Eleonora de Lucena, da Folha de S. Paulo.
Fez-me lembrar a tese soturna de Friedrich Engels: se uma classe dominante consegue perpetuar relações de produção condenadas, que estão travando o desenvolvimento das forças produtivas, acaba ensejando o advento da barbárie.
Assim, quando a escravidão se tornou anacrônica e contraproducente, era Spartacus e seus gladiadores que encarnavam a possibilidade de, mediante sua extinção, o Império Romano ascender a um degrau superior de civilização. Ao derrotá-los, Roma tirou de cena os únicos sujeitos históricos capazes de darem uma resposta positiva à contradição existente.
Detida a revolução que a transformaria  por dentro, fazendo-a evoluir, sobreveio a estagnação, o enfraquecimento e, finalmente, a destruição por parte dos que vinham  de fora  e expressavam um estágio de desenvolvimento há muito superado por Roma. O relógio da História andou para trás.

Agora, podemos estar diante de uma situação semelhante. O capitalismo se torna cada vez mais pernicioso e destrutivo, porque esgotou seu papel histórico e tem sobrevida parasitária. 

Desenvolveu enormemente as forças produtivas, permitindo que a humanidade finalmente ultrapassasse a barreira da necessidade; hoje estão dadas as condições para a produção de tudo aquilo de que cada habitante do planeta necessita para uma existência digna.
Mas, tendo como prioridade máxima o lucro e não o atendimento das necessidades humanas, desperdiça criminosamente tal potencial, impõe uma desnecessária e embrutecedora penúria a parcela considerável da humanidade, provoca turbulências econômicas cada vez mais frequentes, multiplica as agressões ambientais e malbarata os recursos naturais finitos dos quais depende a sobrevivência de nossa espécie.
Por enquanto, graças aos mimos que proporciona aos que participam do sistema (ao preço da exclusão de tantos outros seres humanos), à avassaladora eficiência tecnológica e à manipulação científica das consciências por parte de sua nefanda indústria cultural, tem conseguido evitar a revolução — cada vez mais necessária e premente. Até quando?
Marcuse acreditava numa resposta provinda de quem estivesse fora do sistema, não submetido à sua lógica unidimensional, que exclui alternativas e veda o espírito crítico.
É exatamente o que começa a suceder, como, aliás, está bem caracterizado nestas outras afirmações do sociólogo Burawoy (foto abaixo):
Estive em Barcelona e vi os indignados. Agora também em Wall Street. São muito similares. Resistem a se engajar no sistema político, em levantar temas políticos…
Todos esses movimentos refletem uma era de exclusão. (…) O centro de gravidade desses movimentos são os excluídos, os desempregados, estudantes semiempregados, juventude desempregada, até membros precários da classe média. É um conglomerado de grupos diferentes todos vivendo um estado de precariedade porque foram excluídos da possibilidade de ter uma posição estável [dentro do sistema, pois esta se tornou] um privilégio para poucos.

…É um movimento muito fluido e flexível. (…) Há espontaneidade, flexibilidade. É fascinante. Aparecer, desaparecer. É parte de sua força e de sua fraqueza.

…os participantes são de esquerda, são radicais democratas participativos, que preferem estruturas horizontais a verticais. Protestam contra o capitalismo que enxergam ao seu redor.
Mas, esses pequenos Davis serão suficientes para derrotar o terrível Golias dos dias atuais? Provavelmente, não.
No entanto, a barbárie também ronda as fronteiras do império — não mais na forma de contingentes humanos, mas sim das forças de destruição que o capitalismo engendrou contra si, mas se abaterão sobre nós todos.
Então, as catástrofes ambientais que assolarão o planeta nas próximas décadas devem forçar os homens a unirem-se na luta pela sobrevivência. Será o momento em que, obrigados a tomar seu destino nas mãos, poderão dar um novo rumo à economia e à sociedade, que vão ser obrigados a reconstruir.
O certo é que, lembrando a canção célebre de Neil Young, estamos saindo do azul e entrando nas trevas.
Quiçá saiamos delas regenerados.

NÓS, BRASILEIROS, SOMOS INFERIORES. É O QUE TROMBETEIA A IMPRENSA CANALHA

Eis os parágrafos iniciais da notícia Brasileiro produz abaixo da média mundial, de Mariana Schreiber, Folha de S. Paulo:

A produtividade do trabalhador brasileiro está abaixo da média mundial e tem evoluído em ritmo bem menor do a que a dos trabalhadores de outros países emergentes.
Um brasileiro produziu no ano passado, em média, um quinto da riqueza gerada por um americano, um terço da de um sul-coreano e cerca da metade da de um argentino, calcula a consultoria americana Conference Board.
De 2005 a 2010, a produtividade do brasileiro cresceu em média 2,1% ao ano, taxa inferior as de China (9,8%), Índia (5,8%) e Rússia (3,2%).
Segundo economistas, isso ajuda a explicar a perda de competitividade do produto brasileiro e o aumento da inflação no país. Na medida em que a remuneração cresce mais rápido que a produtividade, produtos e serviços tendem a ficar mais caros.
Para os economistas do sistema, esta é uma  enoooorme  preocupação. Medindo o desempenho de trabalhadores com critérios mais apropriados para bestas de carga, concluem que somos inferiores, preguiçosos e indisciplinados.
Jamais se colocam a óbvia questão: o brasileiro deve produzir mais para quê, se o retorno do seu trabalho, para si próprio, é um quinto do que recebe um estadunidense (americanos somos todos, dona repórter colonizada…) e metade do que ganha um argentino — quanto ao sul-coreano, bem, asiáticos costumam consentir em serem superexplorados.

E uma questão mais geral: produzir mais para quê, se o volume do que o mundo inteiro produz é mais do que suficiente para a quantidade de seres humanos existente? O xís da questão é o que se produz e como se reparte.

Além de o aumento desnecessário da produção bruta, sob o capitalismo, implicar agressões cada vez maiores ao ambiente, aproximando-nos de cenários apocalípticos.
Mas, como está bem exemplificado na notícia acima citada, a indústria cultural martela dia e noite os valores do sistema nas cabeças bovinizadas. E, exatamente como previa Marcuse, as minorias dotadas de espírito crítico não conseguem prover o antídoto na mesma escala do veneno; quanto muito, plantam a semente da dúvida em pequenos contingentes.
O represado no nível da consciência, contudo, tende a eclodir em explosões de rebelião aparentemente confusas quanto a objetivos maiores — como a onda de revoltas na Europa e nos países árabes.
Aprisionados pela racionália que a lavagem cerebral capitalista impõe avassaladoramente, os revoltosos não conseguem discernir os caminhos de sua libertação.
Ainda assim, estes passam necessariamente pela rebelião.
E será posicionados ao lado dos rebeldes que poderemos, de dentro, tornar mais consequentes esses movimentos.
Os que os ficam  de fora  a criticá-los são tudo, menos revolucionários.

BAÚ DO CELSÃO: "O RENASCER DAS CINZAS E O HOMEM NOVO"

“O anseio meu nunca mais vai ser só
Procura ser da forma mais precisa
O que preciso for
Pra convencer a toda gente
Que no amor e só no amor
Há de nascer o homem de amanhã”
(
Geraldo Vandré, “Bonita”)
O ideário político dos contestadores de 1968 é pouco lembrado e menos ainda reverenciado, já que não convém aos que hoje confrontam, a partir de posições ortodoxas, o capitalismo e suas inúmeras mazelas (desigualdade social, ganância e competição exacerbadas, parasitismo, mau aproveitamento do potencial produtivo que hoje seria suficiente para proporcionar-se uma existência digna a cada habitante do planeta, danos ecológicos, etc.).

Nas barricadas parisienses, gritando slogans como “a imaginação no poder” e “é proibido proibir”, muitos estudantes erguiam as bandeiras negras do anarquismo, que marcara forte presença nos movimentos revolucionários do século 19, mas havia perdido terreno desde a vitória do bolchevismo em 1917.

A tentativa de construção do socialismo em países isolados e economicamente atrasados já se evidenciava desastrosa, por degenerar em totalitarismo. A URSS e seus satélites, bem como a China e Cuba, sacrificavam uma das principais bandeiras históricas das esquerdas, a liberdade, para priorizarem a outra, a igualdade.

E nem a esta última conseguiam ser totalmente fiéis. Propiciavam, sim, melhoras materiais significativas para os trabalhadores, mas nem de longe extinguiram os privilégios, tornando-os até mais afrontosos ao substituírem as antigas classes dominantes por odiosas nomenklaturas (as camadas dirigentes do partido único e as burocracias governamentais, que se interpenetravam e coincidiam na justificativa/imposição de seu status de mais iguais).

O desencanto dos jovens europeus com o socialismo real  se somou à constatação de que o proletariado industrial das nações prósperas se tornara baluarte, e não inimigo, do capitalismo. Seduzido pelos avanços econômicos que vinha obtendo, preferia tentar ampliá-los do que apostar suas fichas numa transformação radical da sociedade. Ou seja, face à célebre alternativa de Rosa Luxemburgo – reforma ou revolução? – os aristocratizados operários do 1º mundo optaram pela primeira, como Edouard Bernstein previra.

Em termos teóricos, o filósofo Herbert Marcuse já dissecara tanto o desvirtuamento do marxismo soviético quanto a transformação do capitalismo avançado num sistema impermeável à mudança, a partir da sedução do consumo, da eficiência tecnológica e da influência atordoante da indústria cultural, que estava engendrando um homem unidimensional (incapaz de exercer o pensamento crítico). 

Foi ele a grande inspiração dos jovens contestadores de 1968, mesmo porque praticamente augurara sua entrada em cena, assumindo o papel de vanguarda que o proletariado deixara vago.

Para Marcuse, somente os descontentes com a sociedade (pós) industrial – intelectuais, estudantes, boêmios, poetas, beatniks e demais outsiders – perceberiam seu totalitarismo intrínseco e seriam capazes de revoltar-se contra ela. Os demais, partícipes do sistema como produtores e consumidores, seguiriam mesmerizados por sua racionalidade perversa.

O diagnóstico de Marcuse acabaria sendo melancolicamente confirmado quando esses descontentes colocaram a revolução nas ruas de Paris e o proletariado lhes voltou as costas, preferindo arrancar pequenas concessões de De Gaulle do que apeá-lo do poder. O Partido Comunista Francês, quem diria, desempenhou papel decisivo na manutenção do status quo, ajudando a salvar o capitalismo na França.

Mas, o esmagamento das primaveras de Paris e de Praga não conteve o impulso dessa nova maré revolucionária, que continuou pipocando nos vários continentes, com especial destaque para a contracultura e o repúdio à Guerra do Vietnã por parte da juventude estadunidense.

Foi, principalmente, nos EUA que os novos anarquistas se lançaram à criação de comunidades urbanas e rurais para praticarem um novo estilo de vida, solidário e livre. Substituíam os antigos laços familiares pela comunhão grupal – ou, como diziam, tribal – e dividiam fraternalmente as tarefas relativas à sua sobrevivência, tal como sucedia nas colônias cecílias de outrora.

A idéia era a de irem expandindo a rede de territórios livres até que engolfassem toda a sociedade. Então, em vez de colocarem a tomada do poder como ponto-de-partida para as transformações sociais, deflagradas de cima para baixo, eles pretendiam expandir horizontalmente seu modelo, pelo exemplo e adesão voluntária (nunca pela coerção!), até que se tornasse dominante.

Acreditavam que, descaracterizando seus ideais para conquistarem os podres poderes, os revolucionários acabavam sendo mudados pelo mundo antes de conseguirem mudar o mundo. Então, era preciso que ambos os processos ocorressem simultaneamente: deveriam construir-se como homens novos à medida que fossem construindo a sociedade nova.

Esse anarquismo renascido das cinzas e atualizado foi o último grande referencial revolucionário do nosso tempo, daí despertar até hoje a simpatia dos jovens que buscam a saída do inferno pamonha do capitalismo (uma definição antológica do Paulo Francis!) e a ojeriza daquela esquerda que ainda se restringe aos projetos de conquista do poder político.

A questão é se, como em outras circunstâncias históricas, a maré revolucionária será novamente retomada a partir do último ápice atingido (mesmo que com intervalo de décadas entre os dois ascensos).

Os artistas, antenas da raça, crêem que sim. Desde o genial cineasta suíço Alain Tanner (Jonas, Que Terá 25 Anos no Ano 2000), para quem as vertentes e tendências de 1968 voltarão a confluir, reatando-se os fios da História; até nosso saudoso Raul Seixas, que nos aconselhava a tentarmos outra vez e tantas vezes quantas fossem necessárias, não dando ouvidos às pregações tendenciosas da mídia contra a geração das flores e das barricadas.

Esta digressão, que começou citando uma pungente canção de Vandré, merece ser encerrada com um desabafo, que talvez venha a se revelar profético, do bravo guerreiro Raulzito: “Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh baby, oh baby,/ A gente ainda nem começou”.

(artigo que escrevi em abril/2008, quando a Primavera de Paris completava 40 anos)

FRANCIS, MARCUSE E A INDÚSTRIA CULTURAL

“A polícia chamada ao local apreendeu facilmente Chapman, (…) sorrindo, certo (e está certíssimo) que do anonimato se tornará, como Lennon, uma celebridade. Esse o motivo aparente do crime. O canibalismo de celebridades que é rotina neste país (e no Brasil e todo o mundo ocidental), graças a um sistema de comunicações que evita assuntos sérios, mas que fornece um ‘circo’ permanente, obsessivo, avassalador, sobre a vida dos bem-sucedidos e ricos, excitando sentimentos contraditórios da adoração bocó dos fãs, à frustração homicida que às vezes se manifesta à la Chapman”.

Trecho de artigo que Paulo Francis escreveu quando do assassinato de John Lennon, Cinco tiros abrem novos negócios,  publicado pela Folha de S. Paulo em 10/12/1980.
Não sei se antes ou depois, Francis encontrou a definição ideal para essa canibalesca sociedade consumidora do circo  permanente, obsessivo e avassalador  fornecido pelo sistema de comunicações: inferno pamonha, ou bocó.

Hoje a Folha não critica mais o  inferno pamonha, pois assumiu tranquilamente o papel que nele lhe cabe: direcionando-se para um público um tantinho mais sofisticado, não evita os assuntos sérios, mas lhes dá tratamento circense, com indisfarçável pendor para as provocações pueris e sólida blindagem contra o pensamento verdadeiramente crítico.

Não há mais espaço para o contraditório, nem para a negação dos valores do capitalismo e do consumismo. A porta fechada com que eu e outros críticos do mau jornalismo temos nos chocado nas tentativas de restabelecer verdades históricas, o próprio Francis encontraria se tentasse publicar na Folha de hoje análises como a acima citada.
As vítimas da indústria cultural estão sendo induzidas a desconhecerem as lições do passado e a abdicarem de quaisquer responsabilidades na construção de um futuro melhor — ou, mesmo,  de qualquer futuro, já que a própria sobrevivência da espécie humana está seriamente ameaçada pela ganância capitalista — graças à imposição  permanente, obsessiva e avassaladora  do quadro presente como a única realidade possível. 

Marcuse explica:

 ….a dominação — disfarçada em afluência e liberdade — se estende a todas as esferas da vida pública e privada, integra toda oposição autêntica, absorve todas as alternativas. A racionalidade tecnológica… [se torna] o grande veículo de melhor dominação, criando um universo verdadeiramente totalitário, no qual sociedade e natureza, corpo e espírito são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa desse universo.

…Pois ‘totalitária’ não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não terrorista, que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos.

A influência atordoante, mesmerizante e — vamos falar claro — imbecilizante da indústria cultural tem sido fundamental para a reprodução desse universo  verdadeiramente totalitário

THANATOS EXPLICA

Quanto mais o capitalismo putrefato se evidencia como ameaça terrível à sobrevivência da humanidade, mais se impõe uma releitura dos proféticos autores que há décadas nos alertaram: perpetuando-se para além do esgotamento de sua função histórica, o capitalismo assumiria na sobrevida o papel de  agente  do instinto de morte.

São eles Herbert Marcuse (Eros e Civilização, 1955) e Norman O. Brown (Vida Contra Morte, 1959), cujas teorias são complexas demais para serem adequadamente abordadas neste post.
Vale notar, entretanto, que, aplicando à análise histórica os ensinamentos freudianos, eles chegaram a conclusões não muito diferentes das de Friedrich Engels no século XIX, em sua advertência célebre: se o capitalismo conseguisse represar indefinidamente a revolução necessária para que a História continuasse avançando, provocaria o advento da barbárie, como aconteceu com o Império Romano.
Enfim, os sinais estão todos aí. Desde os riscos cada vez maiores de sucumbirmos ao aquecimento do planeta e ao esgotamento de recursos naturais necessários para a sobrevivência da espécie humana,devido à prioridade do lucro sobre o bem comum, até os reveladores/presságos  absurdos nossos de cada dia.
Caso da decisão da Justiça Federal anunciada nesta 5ª feira (29), suspendendo a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que restringia a publicidade de alimentos com altos teores e açúcar, sódio e gorduras trans e saturadas.
Ou seja, que os homens se tornem cada vez mais obesos e estourem de enfarte, de preferência à queda do faturamento dos fabricantes desses venenos e das agências de publicidade que os impingem.
Thanatos explica.