Primavera de Praga

A REVOLUÇÃO (MAIS DO QUE NUNCA!) NECESSÁRIA

Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída.

O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o Partido Bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!).

Prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como um estopim para a revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.

Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova república soviética ficou isolada e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada.

Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu — não dura indefinidamente, em meio à penúria –, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade.

A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.

“…finalmente, um tirano substitui o Comitê Central…”

A república soviética acabou salvando o mundo do nazismo — foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! –, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim uma odiosa  nomenklatura.

Concretizara-se a profecia sinistra de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.
Com uma ou outra nuance, foi este o destino das revoluções que tentaram edificar o  socialismo num só país: ficaram isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo na economia com stalinismo na política).
E AGORA, JOSÉ?

Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx.
Reassumirmos a tarefa de engendrar  uma onda revolucionária que varrerá o mundo.
Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário.
Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros… e o resultado foi um milênio de trevas.
Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem propícias do que um século atrás:
“…só unidos e solidários os homens conseguirão sobreviver…”
  • o capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva — tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o  reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa;
  • os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, p. ex., hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo);
  • a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelo agravamento das contradições econômicas insolúveis do capitalismo e pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários eles conseguirão sobreviver.
Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas).
A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos  videotas.
É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos do muro de Berlim e dos outros muros tombados de 1989 para cá.

GOVERNOS TOTALITÁRIOS E CORRUPTOS TÊM MESMO DE SER DERRUBADOS

Grandes jornalistas do passado, como Carlos Heitor Cony, são leitura obrigatória para quem procura alternativa à mesmice insossa e ao reacionarismo hidrófobo da imprensa atual.

Seus lampejos são cada vez mais esporádicos mas, quando acontecem, produzem mais luz do que os escribas medíocres durante uma carreira inteira.
Neste domingo (27), p. ex., foi Cony quem melhor definiu (ver aqui) a onda de derrubada dos  tiranos das Arábias –absurdamente defendidos por uma esquerda que perdeu o rumo e o prumo. Marx deve estar se revirando na cova.
Talvez por temerem que a onda chegue às praias de cá e atinja seus homens fortes prediletos, certos esquerdistas enfiaram a cabeça na areia, como avestruzes, alheando-se aos sentimentos populares de acolá.
Se antes os reacionários enxergavam o  dedo de Moscou  em tudo, agora são esses companheiros desatinados que atribuem revoltas mais do que justificadas à instigação da Otan, confundindo coadjuvante com protagonistas.

Então, Cony encontrou a medida certa para dimensionar a onda de revoltas que está sendo apelidada de  Primavera Árabe (na esteira das primaveras de Paris e de Praga em 1968):

…eu diria que há dois denominadores comuns. O primeiro, e mais óbvio, é o fato de nações subjugadas por tiranos de vários calibres se revoltarem contra governos totalitários e corruptos.
O segundo denominador comum é que ninguém sabe -nem o pessoal de lá nem o de cá, ou seja, do Ocidente que se diz democrático ou liberal- o que está sendo preparado para substituir os regimes depostos.

 Não há uma liderança clara, um programa nacional de corte positivo. Em cada país, há o ostensivo repúdio ao existente, mas não está claro, ainda, o que virá depois. Somente o sentimento da revolta não basta para haver uma Primavera Árabe de fato.

Essa falta de liderança -pensando bem- não afeta apenas os países que estão se movimentando em busca de um destino maior e melhor.
Tanto na Europa como nas Américas, não há líderes convincentes…
Ou seja, os povos da região não sabem direito aonde querem chegar, mas não aguentavam mais continuarem onde estavam.

Quase sempre é assim que os povos reagem às tiranias: um belo dia se convencem de que o  grande ditador  pode ser defenestrado e, arriscando-se à morte e às piores torturas, levantam-se contra o velho regime.

Aí, cabe à vanguarda assumir e direcionar essa revolta espontânea.

Inexistindo uma vanguarda apta, como parece ser o caso, fica-se depois nesse limbo. Tudo pode acontecer, desde a estabilização capitalista até revoluções anticapitalistas. O jogo agora está aberto.
Alguém que se pretenda revolucionário não pode, jamais, querer que o povo de qualquer país permaneça sob o tacão de “governos totalitários e corruptos”.
Assim como nos livramos do nosso em 1985, os árabes têm todo direito de se livrarem dos deles.
E, assim como os EUA de Jimmy Carter nos ajudaram a expelir os tiranos que os EUA de Lyndon Johnson e Richard Nixon nos haviam enfiado goela adentro, os árabes têm todo direito de decidir qual ajuda querem aceitar.
Quem enfrentou verdadeiramente uma ditadura, sabe muito bem como é difícil travar lutas tão desiguais, tendo poder de fogo infinitamente menor e confrontando inimigos totalmente sem escrúpulos.
Exigir que, além disto, os revoltosos recusem apoios oferecidos é pedir-lhes demais –atitude típica dos revolucionários de boteco.

BAÚ DO CELSÃO: "O RENASCER DAS CINZAS E O HOMEM NOVO"

“O anseio meu nunca mais vai ser só
Procura ser da forma mais precisa
O que preciso for
Pra convencer a toda gente
Que no amor e só no amor
Há de nascer o homem de amanhã”
(
Geraldo Vandré, “Bonita”)
O ideário político dos contestadores de 1968 é pouco lembrado e menos ainda reverenciado, já que não convém aos que hoje confrontam, a partir de posições ortodoxas, o capitalismo e suas inúmeras mazelas (desigualdade social, ganância e competição exacerbadas, parasitismo, mau aproveitamento do potencial produtivo que hoje seria suficiente para proporcionar-se uma existência digna a cada habitante do planeta, danos ecológicos, etc.).

Nas barricadas parisienses, gritando slogans como “a imaginação no poder” e “é proibido proibir”, muitos estudantes erguiam as bandeiras negras do anarquismo, que marcara forte presença nos movimentos revolucionários do século 19, mas havia perdido terreno desde a vitória do bolchevismo em 1917.

A tentativa de construção do socialismo em países isolados e economicamente atrasados já se evidenciava desastrosa, por degenerar em totalitarismo. A URSS e seus satélites, bem como a China e Cuba, sacrificavam uma das principais bandeiras históricas das esquerdas, a liberdade, para priorizarem a outra, a igualdade.

E nem a esta última conseguiam ser totalmente fiéis. Propiciavam, sim, melhoras materiais significativas para os trabalhadores, mas nem de longe extinguiram os privilégios, tornando-os até mais afrontosos ao substituírem as antigas classes dominantes por odiosas nomenklaturas (as camadas dirigentes do partido único e as burocracias governamentais, que se interpenetravam e coincidiam na justificativa/imposição de seu status de mais iguais).

O desencanto dos jovens europeus com o socialismo real  se somou à constatação de que o proletariado industrial das nações prósperas se tornara baluarte, e não inimigo, do capitalismo. Seduzido pelos avanços econômicos que vinha obtendo, preferia tentar ampliá-los do que apostar suas fichas numa transformação radical da sociedade. Ou seja, face à célebre alternativa de Rosa Luxemburgo – reforma ou revolução? – os aristocratizados operários do 1º mundo optaram pela primeira, como Edouard Bernstein previra.

Em termos teóricos, o filósofo Herbert Marcuse já dissecara tanto o desvirtuamento do marxismo soviético quanto a transformação do capitalismo avançado num sistema impermeável à mudança, a partir da sedução do consumo, da eficiência tecnológica e da influência atordoante da indústria cultural, que estava engendrando um homem unidimensional (incapaz de exercer o pensamento crítico). 

Foi ele a grande inspiração dos jovens contestadores de 1968, mesmo porque praticamente augurara sua entrada em cena, assumindo o papel de vanguarda que o proletariado deixara vago.

Para Marcuse, somente os descontentes com a sociedade (pós) industrial – intelectuais, estudantes, boêmios, poetas, beatniks e demais outsiders – perceberiam seu totalitarismo intrínseco e seriam capazes de revoltar-se contra ela. Os demais, partícipes do sistema como produtores e consumidores, seguiriam mesmerizados por sua racionalidade perversa.

O diagnóstico de Marcuse acabaria sendo melancolicamente confirmado quando esses descontentes colocaram a revolução nas ruas de Paris e o proletariado lhes voltou as costas, preferindo arrancar pequenas concessões de De Gaulle do que apeá-lo do poder. O Partido Comunista Francês, quem diria, desempenhou papel decisivo na manutenção do status quo, ajudando a salvar o capitalismo na França.

Mas, o esmagamento das primaveras de Paris e de Praga não conteve o impulso dessa nova maré revolucionária, que continuou pipocando nos vários continentes, com especial destaque para a contracultura e o repúdio à Guerra do Vietnã por parte da juventude estadunidense.

Foi, principalmente, nos EUA que os novos anarquistas se lançaram à criação de comunidades urbanas e rurais para praticarem um novo estilo de vida, solidário e livre. Substituíam os antigos laços familiares pela comunhão grupal – ou, como diziam, tribal – e dividiam fraternalmente as tarefas relativas à sua sobrevivência, tal como sucedia nas colônias cecílias de outrora.

A idéia era a de irem expandindo a rede de territórios livres até que engolfassem toda a sociedade. Então, em vez de colocarem a tomada do poder como ponto-de-partida para as transformações sociais, deflagradas de cima para baixo, eles pretendiam expandir horizontalmente seu modelo, pelo exemplo e adesão voluntária (nunca pela coerção!), até que se tornasse dominante.

Acreditavam que, descaracterizando seus ideais para conquistarem os podres poderes, os revolucionários acabavam sendo mudados pelo mundo antes de conseguirem mudar o mundo. Então, era preciso que ambos os processos ocorressem simultaneamente: deveriam construir-se como homens novos à medida que fossem construindo a sociedade nova.

Esse anarquismo renascido das cinzas e atualizado foi o último grande referencial revolucionário do nosso tempo, daí despertar até hoje a simpatia dos jovens que buscam a saída do inferno pamonha do capitalismo (uma definição antológica do Paulo Francis!) e a ojeriza daquela esquerda que ainda se restringe aos projetos de conquista do poder político.

A questão é se, como em outras circunstâncias históricas, a maré revolucionária será novamente retomada a partir do último ápice atingido (mesmo que com intervalo de décadas entre os dois ascensos).

Os artistas, antenas da raça, crêem que sim. Desde o genial cineasta suíço Alain Tanner (Jonas, Que Terá 25 Anos no Ano 2000), para quem as vertentes e tendências de 1968 voltarão a confluir, reatando-se os fios da História; até nosso saudoso Raul Seixas, que nos aconselhava a tentarmos outra vez e tantas vezes quantas fossem necessárias, não dando ouvidos às pregações tendenciosas da mídia contra a geração das flores e das barricadas.

Esta digressão, que começou citando uma pungente canção de Vandré, merece ser encerrada com um desabafo, que talvez venha a se revelar profético, do bravo guerreiro Raulzito: “Todo jornal que eu leio/ Me diz que a gente já era/ Que já não é mais primavera/ Oh baby, oh baby,/ A gente ainda nem começou”.

(artigo que escrevi em abril/2008, quando a Primavera de Paris completava 40 anos)

BAÚ DO CELSÃO: "A CRIMINALIDADE É INTRÍNSECA AO CAPITALISMO"

Este artigo, que tem muitos pontos de contato com O caos da Ordem, foi lançado 
em 01/02/2008, como um resumo da minha intervenção na mesa-redonda 
“Metamorfoses sócio-econômicas, segregação sócio-espacial 
e o fenômeno da violência na Grande Vitória”, durante 
o II seminário Internacional de Desenvolvimento 
Local, realizado no mês de dezembro 
de 2007 em Vitória, ES.

O problema da escalada da criminalidade no Brasil vai muito além da ótica simplista e repressiva da nossa mídia. Tem a ver com o estilhaçamento da família e da sociedade sob o capitalismo globalizado.

Ambas ainda se mantinham razoavelmente estruturadas no chamado capitalismo industrial, apesar de todos os defeitos que tão bem conhecemos: desigualdades econômicas e sociais, elitismo, autoritarismo, etc.
No final da década de 1960, entretanto, esse modelo chegou ao esgotamento. O próprio capitalismo demandava uma desestruturação da antiga sociedade, para erguer uma nova sobre seus escombros. Os jovens, entretanto, tentaram ir mais longe: em vez da substituição de uma forma de dominação por outra, sonharam com o fim de todas as dominações.
Com o fracasso das tentativas revolucionárias do período (da  Primavera de Paris  à de Praga, passando pela contestação nos EUA e pelos movimentos revolucionários no 3º mundo) implantou-se a sociedade de massas, em que tudo e todos devem estar permanentemente disponíveis para o consumo.
No Brasil, isto se deu em meio à paz dos cemitérios, na terrível década de 1970.
Os órgãos de comunicação, assumindo plenamente as características de uma indústria cultural, deixaram de lado a missão de formar (expoentes da elite) para o exercício do pensamento crítico, restringindo-se a apenas informar (a elite e a classe média) fragmentariamente e a repisar os valores capitalistas. 
Ou seja, a formação de cidadãos cedeu lugar à capacitação de profissionais, os apertadores de parafusos do sistema.
O trabalho perdeu qualquer atrativo que ainda tivesse como concretização do potencial criativo do ser humano. Tornou-se uma corrida de ratos atrás do dinheiro, sem ética nem o mínimo respeito pelo interesse coletivo.
O ingresso em massa da mulher no mercado de trabalho aviltou remunerações e subjugou toda a família à engrenagem de produção e consumo, transformando o lar em mero dormitório.

A família foi desvalorizada pela influência atordoante da comunicação de massas. Pais e mães cansados não conseguem competir com o brilho da telinha que hipnotiza as crianças, impingindo-lhes os valores consumistas.

Então, nada existe de estranho no fato de que as pessoas sem aptidões para competir dentro do sistema busquem atalhos para conseguir aqueles bens dia e noite propagandeados como objetos de desejo.
Perplexos, muitos cidadãos gostariam de ver aplicadas aqui as punições drásticas dos países muçulmanos: que se cortassem as mãos dos ladrões, o pênis dos estupradores e a vida dos assassinos. Olho por olho, dente por dente.
Outros pedem mais policiais nas ruas, de preferência atirando primeiro e perguntando depois… nos bairros pobres ou quando os suspeitos são negros, pardos ou malvestidos, é claro.
E há os que defendem a maioridade penal a partir dos 14 ou 16 anos, o que somente fará os bandidos diminuírem proporcionalmente a idade do recrutamento de seus serviçais, até que tenhamos crianças empunhando fuzis e metralhadoras. O velho chavão moralista mudará de “hoje mocinho, amanhã bandido” para “hoje bandido, amanhã defunto”.
No fundo, tudo isso são paliativos. Inexiste forma ideal de se lidar com aqueles que já se tornaram bestas-feras, nocivos para si próprios e para a sociedade. Pode-se, quanto muito, controlá-los – e a um custo dos mais elevados para um país de tantas e tão dramáticas carências.
Exterminá-los, jamais! Isso levaria a violência a patamares apocalípticos, pois os bandidos não teriam mais nada a perder. Nós, sim, perderíamos, ao abrirmos mão da civilização arduamente edificada nos milênios que nos separam da horda primitiva, voltando à estaca zero.

O VERDADEIRO VILÃO

O xis do problema, no entanto, nunca é discutido: o fato de que a criminalidade é intrínseca ao capitalismo e subsistirá enquanto não substituirmos o primado da ganância e da competição pelo da solidariedade e da cooperação.

Vivemos numa sociedade: 
  • que desperdiça o potencial já existente para se proporcionar uma existência digna a cada habitante do planeta; 
  • que faz as pessoas trabalharem muito mais do que o suficiente para a produção do necessário e útil;
  • que condena parcela substancial da população economicamente ativa ao desemprego, à informalidade e à mendicância; 
  • que estimula ao máximo a compulsão consumista sem dar à maioria a condição de adquirir seus objetos de desejo; 
  • que retirou do trabalho qualquer atrativo como realização individual, tornando-o apenas um meio para obtenção do vil metal (ou seja, uma nova forma de escravidão).
Então, os que ainda têm emprego e os empreendedores continuarão irrealizados, esforçando-se demais para nunca obterem as gratificações almejadas, pois a lógica do capitalismo é perpetuar a insatisfação e mitigá-la com o consumo (a cenoura colocada à frente do asno para que ele continue puxando a carroça). Um círculo vicioso perverso que faz a fortuna dos analistas, dos farsantes religiosos e dos  picaretas  da auto-ajuda.
Alguns excluídos continuarão vivendo das esmolas dos programas oficiais e vão ajudar a eleger aqueles a quem convém mantê-los em eterna dependência.
Outros tentarão obter pela força aquilo que jamais alcançarão pela competência. E servirão de espantalho para intimidar as classes superiores, fazendo-as crer que uma sociedade policial seria a solução.
É paradoxal que, em nossa época, formidáveis avanços científicos e tecnológicos coexistam com uma regressão ao ambiente medieval, com os nobres entrincheirados em condomínios de alto padrão, circulando em veículos brindados e só podendo levar vida social em shopping centers, sem ousarem expor-se fora de suas fortalezas. No exterior desses espaços fortificados e vigiados, os bárbaros estão sempre à espreita, prontos para desferir seus golpes.
Uma constatação terrível de Friedrich Engels, um dos pais do marxismo: quando uma sociedade consegue aniquilar as forças progressistas que poderiam levá-la a um estágio superior de civilização, acaba sendo destruída pela barbárie. O paralelo é com Roma, que venceu os gladiadores de Spartacus mas sucumbiu aos povos atrasados, condenando o mundo a séculos de trevas.

E o papel de carrasco da sociedade putrefata não será necessariamente cumprido pelos excluídos do progresso desequilibrado e insano: não só as crises cíclicas do capitalismo continuarão  convulsionando a economia com recessões que, mais dia, menos dia, evoluirão para uma depressão tão terrível como a da década de 1930; como já estamos sentindo chegarem as décadas de devastações com que o meio ambiente pagará, na mesma moeda, àqueles poucos que gananciosamente o devastaram e àqueles muitos que bovinamente consentiram na devastação.

O que resta saber é se os homens conseguirão unir-se na adversidade, assumindo uma responsabilidade coletiva pela perpetuação da espécie humana.
Pois, prevalecendo a mentalidade do salve-se quem puder, a humanidade dificilmente sobreviverá ao capitalismo.

UM IDEÁRIO PARA A REVOLUÇÃO DO SÉCULO 21

Em sua coluna dominical — Adeus, Fidel; adeus, silêncio? –, o veterano jornalista Clóvis Rossi aborda as “reformas econômicas que transformarão a ilha caribenha”, a serem aprovadas hoje (17), no 6º Congresso do Partido Comunista Cubano.

Segundo ele, o corte de um quinto dos postos de trabalho no setor público e o estímulo à criação de um setor privado capaz de absorver tais trabalhadores implicarão a abertura do regime cubano: “às reformas econômicas que serão lançadas hoje seguir-se-á a prazo relativamente curto a reforma política”.
Ele especula que a construção do porto de Mariel, financiada pelo Brasil, “só tem sentido se for para exportar para os Estados Unidos”.
E,  como queria demonstrar, conclui: “Se é assim, implica o restabelecimento de relações, com todo o cortejo de consequências”.
Se os palpites de Clóvis Rossi estiverem certos, preparemo-nos para a grita ensurdecedora da imprensa burguesa, festejando a capitulação da pequenina ilha asfixiada pelo embargo comercial estadunidense.
E vamos, sim, dar nossa resposta a esta zombaria do jornalista:
Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.
 BECO SEM SAÍDA
Já faz quase um século que os movimentos revolucionários desviaram por atalho que acabou conduzindo a um beco sem saída.
O desvio foi decidido às vésperas da revolução soviética, quando o Partido Bolchevique discutiu dramaticamente se valia a pena tomar-se o poder num país atrasado, contrariando duas premissas marxistas: a da revolução internacional e a da construção do socialismo a partir das nações economicamente mais pujantes (e não o contrário!).

Prevaleceu o argumento de que, embora a Rússia não estivesse pronta para o socialismo, serviria como um estopim da revolução mundial, começando pela revolução alemã, prevista para questão de meses. Então, o atraso econômico russo seria contrabalançado pela prosperidade alemã; juntas, efetuariam uma transição mais suave para o socialismo.

Deu tudo errado. A reação venceu na Alemanha, a nova república soviética ficou isolada e, após rechaçar bravamente as tropas estrangeiras que tentaram restabelecer o regime antigo, viu-se obrigada a erguer uma economia moderna a partir do nada.

“…finalmente, um tirano
substitui o Comitê Central…”

Quando o ardor revolucionário das massas arrefeceu — não dura indefinidamente, em meio à penúria –, a mobilização de esforços para superação do atraso econômico acabou se dando por meio da ditadura e do culto à personalidade.

A Alemanha nazista era o espantalho que impunha urgência: mais dia, menos dia haveria o grande confronto e a URSS precisava estar preparada. O stalinismo foi engendrado em circunstâncias dramáticas.
A república soviética acabou salvando o mundo do nazismo — foi ela que quebrou as pernas de Hitler, sem dúvida! –, mas perdeu sua alma: já não eram os trabalhadores que estavam no poder, mas sim uma odiosa  nomenklatura.
Concretizara-se a profecia sinistra de Trotsky: primeiro, o partido substitui o proletariado; depois, o Comitê Central substitui o partido; finalmente, um tirano substitui o Comitê Central.
Com uma ou outra nuance, foi este o destino das revoluções que tentaram edificar o  socialismo num só país: ficaram isoladas, tornaram-se autoritárias e não tiveram pujança econômica para competir com o mundo capitalista, acabando por sucumbir ou por se tornarem modelos híbridos (como o chinês, que mescla capitalismo na economia com stalinismo na política).
E AGORA, JOSÉ?

Agora, só nos resta voltarmos ao princípio de tudo: Marx.
Reassumirmos a tarefa de engendrar  uma onda revolucionária que varrerá o mundo.
Esquecermos a heresia de solapar o capitalismo a partir dos seus elos mais fracos, pois o velho barbudo estava certíssimo: as nações economicamente mais poderosas é que determinam a direção para a qual as demais seguirão, e não o contrário.
Isto, claro, se tivermos como meta a condução da humanidade a um estágio superior de civilização. Pois o cerco das nações prósperas pelos rústicos e atrasados já vingou uma vez, quando Roma sucumbiu aos bárbaros… e o resultado foi um milênio de trevas.
Se, pelo contrário, quisermos cumprir as promessas originais do marxismo, as condições hoje são bem propícias do que um século atrás:
“…só unidos e solidários os
homens conseguirão sobreviver…”
  • o capitalismo já cumpriu seu papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas e está tendo sobrevida cada vez mais parasitária, perniciosa e destrutiva — tanto que mantém a parcela pobre da humanidade sob o jugo da necessidade quando já estão criadas todas as premissas para o  reino da liberdade, e o 1º mundo sob o jugo da competitividade obsessiva, estressante e neurótica, quando já estão criadas todas as premissas para uma existência fraternal, harmoniosa e criativa;
  • os meios de comunicação que ele desenvolveu, como a internet, facilitam a disseminação e coordenação dos movimentos revolucionários em escala mundial, de forma que um novo 1968, p. ex., hoje seria muito mais abrangente (está longe de ser utópica, agora, a possibilidade de uma onda revolucionária varrer o mundo);
  • a necessidade de adotarmos como prioridade máxima a colaboração dos homens para promover o bem comum, em lugar da ganância e da busca de diferenciação e privilégio, será dramatizada pelas consequências das alterações climáticas e da má gestão dos recursos imprescindíveis à vida humana, gerando crises tão agudas que só unidos e solidários eles conseguirão sobreviver.
Nem preciso dizer que a forte componente libertária original do marxismo tem de ser reassumida, pois os melhores seres humanos, aqueles dos quais precisamos, jamais nos acompanharão de outra forma (esta é uma das conclusões mais óbvias a serem tiradas dos acontecimentos das últimas décadas).
A bandeira da liberdade deve ser empunhada de novo pelos que realmente a podem concretizar, não pelos que só têm a oferecer um cativeiro com as grades introjetadas, pois a indústria cultural as martela dia e noite na cabeça dos  videotas.
É este o edifício sólido que podemos começar a construir com os tijolos dos muros tombados.

UM PROGRAMA PARA A ESQUERDA DO SÉCULO 21

Quando a esperança aquecia corações e
iluminava mentes: Primavera de Paris

Um dos grandes diferenciais da minha atuação na internet, em relação a outros articulistas de esquerda, é ir além desse maniqueísmo tosco a que muitos deles reduzem os acontecimentos políticos, numa época em que nada é tão simples como parece.

P. ex., o evidente interesse das potências ocidentais em derrubar o ditador líbio Muammar Gaddafi fez os desnorteados de esquerda, em nome do antiimperialismo, correrem a alinhar-se, explicita ou implicitamente, com um dos tiranos mais brutais e repulsivos do planeta.
Aí vem a Inteligência da Otan e assinala a presença de integrantes da Al Qaeda e da milícia xiita Hizbollah entre os revoltosos. Ué, mas Al Qaeda e Hizbollah não são  mocinhos  para a esquerda brasileira? E os insurgentes não são  teleguiados pela CIA?
Depois, ficamos sabendo que o grande aliado ocidental de Gaddafi é, nada mais, nada menos, do que o neofascista-mor Silvio Berlusconi.
Tanto que Franco Frattini, o ministro italiano do Exterior, empenha-se em salvar a vida e a liberdade do ditador, tentando encontrar um país africano que aceite receber esse traste e não se disponha a entregá-lo, como merece, ao Tribunal Penal Internacional, para que seja julgado como o foram os criminosos de guerra nazistas em Nuremberg.
Resumo da opereta: quem participa desse jogo político rasteiro e promíscuo do sistema — ou, dizendo de uma forma mais sofisticada, da realpolitik — tem a consistência ideológica da gelatina. Move-se por interesses, embora os fantasie com retórica oportunista de esquerda, centro ou direita.
Primavera de Praga

Mas nós, os revolucionários, não podemos chafurdar nessa lama, sob pena de sermos vistos pelos explorados apenas como  mais do mesmo.

Ou seja, cabe-nos defender, intransigentemente, princípios, ao invés de copiarmos o que há de pior no utilitarismo político dos inimigos — como a postura estadunidense de que certos ditadores são grandes fdp’s, mas são  nossos  fdp’s.
Não, os verdadeiros revolucionários repudiamos a todos e quaisquer ditadores, até porque é assim que pensam e sentem os melhores seres humanos, dos quais não podemos nos dissociar, se quisermos tê-los ao nosso lado na investida contra os podres poderes do planeta.
Hoje somos uma minoria pouco significativa. Precisamos desesperadamente romper o isolamento atual, voltando a representar uma alternativa de poder em escala mundial.

Mas, na era da internet, ou direcionamos nossa atuação para os homens com mente aberta e espírito crítico, ou para os sectários fanatizados. Não há meio termo.

E é mais do que tempo de optarmos definitivamente pelos primeiros e a eles endereçarmos nossas mensagens, instando-os a cerrar fileiras conosco para a salvação da espécie humana (sob gravíssima ameaça de ser extinta pela ganância capitalista) e acenando-lhes com a perspectiva de concretização das duas maiores bandeiras da humanidade através dos tempos: a liberdade e a justiça social.

…e a contestação à Guerra do Vietnã.

Em 1968, éramos capazes de sensibilizar os corações e convencer as mentes porque erguíamos as bandeiras corretas e travávamos o bom combate.

O desafio é reatarmos os fios da História, tendo como referecial  aquele último grande marco por nós atingido — e avançarmos.
Podem-se cortar muitas flores, mas não impedir a chegada da primavera. 

VALE A PENA LER DE NOVO: "A ÉTICA É A ESTÉTICA DO FUTURO"

Quem colocou esta frase em circulação, atribuindo-a a Lênin, foi o genial cineasta Jean-Luc Godard, na década de 1960. Dado aos chistes e ao non sense, Godard pode ter sido ele próprio o autor. Pouco importa. O fato é que sintetiza bem a visão de mundo da juventude mais idealista do século passado.

Em 1968 e nos anos seguintes, tivemos as primaveras de Paris e de Praga, o repúdio universal à intervenção dos EUA no Vietnã, a resistência às ditaduras em todos os quadrantes, movimentos os mais diversos em defesa da justiça social e dos direitos das minorias, bem como a revolução de costumes conhecida como contracultura. Ventos de mudança varreram o planeta. Foi um impulso generoso, solidário, irmanando os melhores seres humanos na busca de um futuro digno para a humanidade.

Houve, portanto, um tempo em que muitos acreditaram piamente na iminência de uma sociedade na qual os relacionamentos entre os seres humanos, de tão éticos e gratificantes, iriam se tornar a realização da estética no cotidiano. Não precisaríamos mais da arte para sonhar acordados com uma beleza inexistente na vida real. O paraíso seria agora.

Depois, claro, veio a reação. E as flores foram sendo, uma a uma, arrancadas.

O capitalismo triunfante moldou o planeta à sua imagem e semelhança: competitividade, ganância, desigualdade, parasitismo, guerras inúteis, agressões insensatas ao meio ambiente, consumismo exacerbado, condenação de vastos contingentes humanos ao desemprego crônico e à miséria aviltante, degradação do pensamento, da arte e dos padrões morais.

Carlos Heitor Cony, que busca afoitamente outros privilégios mas foi privilegiado com dotes de grande escritor, escreveu em 1974 um romance profético, Pilatos. Mostra como seria um mundo em que os homens não tivessem nenhuma motivação idealista, sentimento nobre ou limites morais. Todas as suas ações visariam apenas à satisfação de apetites e de necessidades primárias.

Era um inferno mais assustador que o descrito nas religiões. E tinha tudo a ver com aquele Brasil dos yuppies enriquecidos pelo milagre econômico e das massas anestesiadas pelo tricampeonato de futebol.

Os personagens desumanizados de Pilatos lembram – até demais! – os arautos da extrema-direita remanescente da ditadura militar e os novos discípulos que formou. Infestam a internet, descaracterizaram o Orkut, tornam cada discussão política desgastante e estressante, fazendo do rancor e do retrocesso sua bandeira. O que parecia exagero literário virou triste realidade.

Há indivíduos que conspiram dia e noite para arrastar o Brasil a uma nova ditadura.

Há indivíduos capazes de escrever entusiasticamente em defesa de filmes que fazem apologia da truculência e da tortura.

Há indivíduos que se regozijam quando cidadãos exemplares são flagrados em situações equívocas, como se a grandeza do rabino Henry Sobel pudesse ser empanada pela cleptomania e a do padre Júlio Lancelotti, por ter cedido a uma chantagem sórdida.

Demonstram ódio homicida pelos rivais ideológicos, a ponto de se aproveitarem de suas debilidades humanas – quem não as tem? – para instigarem seu linchamento moral. Como Átila e Gengis Khan, só vêem os inimigos como obstáculos a serem suprimidos.

Seus textos são um deserto de ideais. Não contêm nenhum sonho, nenhuma esperança, nada que sinalize um mundo melhor. Apenas a defesa encarniçada do status quo capitalista e o combate encarniçado aos que, bem ou mal, propõem alternativas.

São contra governos, partidos e pessoas. Abominam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E não têm, sequer, a honestidade de seus congêneres da Espanha, adeptos de Franco, que assumiam abertamente os valores obscurantistas que professavam, ao urrarem “abaixo a inteligência, viva a morte!”.

Este artigo foi escrito há quase dois anos mas, infelizmente, permanece atual. Resolvi republicá-lo por dois motivos: 1) como uma  homenagem  aos linchadores de Cesare Battisti, cuja pequenez, desonestidade e sordidez me viram o estômago; e 2) porque me caiu a ficha de que a distopia do Cony que citei, “Pilatos”, encontrou sua mais perfeita expressão televisiva… no Big Brother Brasil.

1968: O CÉU COMO BANDEIRA E A HISTÓRIA NA MÃO

No início do ano letivo de 1968, sem que ninguém esperasse, a polícia da ditadura atacou com bestialidade extrema um restaurante para estudantes carentes no Rio de Janeiro, acabando por matar a tiros um secundarista de apenas 16 anos, Edson Souto.

O movimento estudantil brasileiro, que tinha sido praticamente extinto pela repressão em 1964, já tentara renascer nas chamadas  setembradas  de 1967, mas a violência dos usurpadores do poder novamente havia prevalecido. Em março de 1968, no entanto, os estudantes voltaram às ruas… para ficarem! Com  a certeza na frente, tentando tomar  a História na mão [1], marcaram fortemente sua presença ao longo do ano.
Aprofundando um pouco a análise, podemos dizer que o final da década de 1960 marca a transição da sociedade rígida e patriarcal característica da fase da industrialização para o amoralismo da sociedade de consumo, em que tudo e todos devem estar disponíveis para o mercado.
Então, de certa forma, a contestação à autoridade de autoridades, reitores, sacerdotes, doutores disso e daquilo, dos luminares da sociedade em geral, convinha ao próprio capitalismo, que estava passando da fase das grandes individualidades para a da liderança participativa. O foco passaria a ser o consumidor, o cidadão comum, em lugar do grande homem, a personificação da elite.
Respirava-se antiautoritarismo. As artes passavam por um momento de ousadias e experimentalismo no mundo inteiro, a imprensa se modernizava a olhos vistos, a liberalização de costumes e a liberação sexual entravam com força total.O movimento estudantil, estimulado pelos ventos de mudança, foi fundo na tarefa de  derrubar as prateleiras, as estátuas, as estantes, as vidraças [2].
E, no hiato entre a etapa capitalista que terminava e a que ia começar, muitos jovens sonharam com algo maior: uma sociedade sem classes, em que não existisse a exploração do homem pelo homem e na qual a economia se voltasse para a satisfação das necessidades humanas em vez de ser regida pela ganância. Um ideal simbolizado por Che Guevara, o último revolucionário internacionalista de dimensões míticas, com seu  corpo cheio de estrelas e tendo  el cielo como bandera [3].
Mas, a repressão brutal desencadeada pela ditadura, principalmente após a assinatura do AI-5, inviabilizou a mudança maior que muitos pretendiam. Então, sobre a terra arrasada, o que floresceu foi mesmo a sociedade de consumo.
A classe média, eufórica com o milagre brasileiro, tratou é de enriquecer. E a esquerda estava tão debilitada pela perda de seus melhores quadros que pouco pôde fazer contra a conjugação de  boom  econômico e terrorismo de estado.
O ME de 1968 foi, portanto, resultado de circunstâncias especiais e únicas. Daí não poder ser comparado com o de hoje (como muitos fazem, para depreciá-lo) , quando os jovens, ademais, têm de esforçar-se no limite de suas forças para começarem bem uma carreira, o que acaba fazendo-os desinteressarem-se por quase todo o resto.
COMPETIÇÃO OBSESSIVA
Essa própria dificuldade insana que encontram para afirmar-se profissionalmente deveria levá-los a refletir sobre as distorções da sociedade atual. A competição obsessiva que aborta talentos e condena tanta gente a não desenvolver seu potencial é um dos horrores do capitalismo globalizado, em que há sempre mais postulantes do que vagas no mercado.
Talvez seja, aliás, este o momento em que os estudantes começam a se indagar sobre a validade de se continuar nesse funil perverso, passando por cima dos despojos dos que tombarem no caminho.
Da mesma forma que as  setembradas  de quatro décadas atrás, a onda de ocupações de reitorias iniciada em 2007 marcou um novo renascimento do movimento estudantil brasileiro — que, desde então, tem dado sinais de vida em toda parte e travado lutas as mais justas.
Não acumulou ainda forças para colocar 100 mil pessoas na rua, como fez na passeata célebre de 1968. Mas, em circunstâncias bem menos favoráveis, já cresceu muito. Não tem como fermento a truculência e o obscurantismo de uma ditadura, contra a qual, necessariamente, os melhores seres humanos tomavam partido.
Zuenir Ventura está certo: 1968 foi um ano que não terminou. A revolução ainda voltará a identificar-se com as flores e as primaveras, depois desse inverno da desesperança em que nos debatemos sob o capitalismo globalizado.

Ainda veremos outras primaveras como as de Paris e de Praga, pois há uma lição que a História várias vezes nos ensinou: a humanidade não agüenta viver indefinidamente sem solidariedade e compaixão.

O mundo se tornou um lugar muito ruim para se viver sob o neoliberalismo. Algo tem de mudar – e essa mudança poderá suceder a partir de agora.
Lembrando o Caetano dos bons tempos:  por que não? [4]
Lembrando o Vandré dos bons tempos:  quem sabe faz a hora, não espera acontecer [5].
Lembrando o Raul Seixas dos bons tempos:  a gente ainda nem começou [6].
[1] Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”
[2] Caetano Veloso, “É Proibido Proibir”
[3] Gil, Capinan e Torquato, “Soy Loco Por Ti, América”
[4] Caetano Veloso, “Alegria, Alegria”
[5] Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”

[6] Raul Seixas, “Cachorro Urubu”